quarta-feira, 11 de março de 2015

"Ser mangolão é uma virtude", sob uma perspectiva filosófica

   
O assim chamado mangolão é um termo que designa um comportamento baseado numa ética crítica e propositiva. O mangolão nasce geralmente em sistemas opressores, que restringem o exercício vital da crítica, da criatividade e do livre pensamento. Um exemplo de sistema são as instituições educacionais, que manipulam o aluno como um corpo dócil, ao invés de valorizá-lo como um ser humano legítimo, dotado não apenas de obediência, moral e disciplina, mas também de habilidades artísticas e criativas. O mangolão, assim, surge da necessidade de expor o lado humano emocional, da desmesura e do exagero, para além das meras formas, moldes e estereótipos que o sistema estabelece. Por isso o fato de o tipo mangolão ser tão musical e cômico: nessas duas faces artísticas, musical e teatral, é que se apresenta a metade humana que os sistemas institucionalizados desprezaram e deceparam. O homem, deste modo, não é apenas razão, mas emoção. Tal razão já fora usada em demasia pelos sistemas, contribuindo negativamente à felicidade vital do ser humano de se apresentar por completo, não somente regrado, como também ébrio. Assim, o comportamento mangoliano não é insensato como comumente considerado, mas sim uma resposta, uma reação do espírito humano contra os limites impostos pelas regras estabelecidas pelos sistemas. Sob esta perspectiva, o mangolão seria o ser dionisíaco de nossos tempos, o símbolo da embriaguez e da celebração espiritual, tão desdenhado pelos contemporâneos sistemas racionalistas. Como o filósofo alemão Friedrich Nietzsche bem analisou sobre a arte trágica, a cultura pós-socrática dividiu o espírito humano, valorizando em demasia o apolíneo – ser da forma, medida e inteligência – e desprezando o dionisíaco – ser da desmesura e da emoção, também parte de nosso espírito vital. O ser humano, sem uma dessas metades de seu espírito, se esvazia e decai, tornando-se incompleto. O mangolão, por sua vez, é o dionisíaco contemporâneo, essencialmente festivo. É por este fato que o mangolão parece sempre alegre, pois celebra todos os momentos da vida, amando incondicionalmente seu próprio destino. O mangolão tem de ter até mesmo uma grande carga de coragem, ao carregar o peso não só das felicidades de seu destino, como também das próprias adversidades. O mangolão, fruto de um berço opressor, ama o fato de celebrar a vida por completo tanto quanto a verdade da opressão, do limite moral e da disciplina provenientes do sistema. Face a face com uma realidade maior que ele mesmo, só resta ao mangolão amá-la em todos os seus sentidos. Nesse ponto que se dá a importância ética do mangolão. Ele se torna uma virtude dos fortes ao justamente ser um bom exemplo de como os indivíduos devem se comportar diante de uma realidade insatisfatória e decadente como a que se vê no mundo contemporâneo.
            O mangolão é uma concepção ética que se manifesta tanto na linguagem quanto no comportamento. É uma ética essencialmente crítica, que afronta o status quo, sendo uma resposta espiritual contra a cultura racionalista contemporânea. O mangolão, assim, é uma ética de combate, uma antítese à sociedade mecanicista, uma resposta que ergue a necessidade humana de liberdade espiritual. Daí o motivo no qual o tipo mangolão é tão criativo: através da criação e da própria arte é que ele levanta sua mais importante bandeira. O espírito alegre do mangolão é uma resistência espiritual, um libertar das rédeas da lógica capitalista pela necessidade de ascensão do próprio espírito dionisíaco, intrínseco ao homem. A linguagem mongoliana, que inclui seu comportamento, é permeada pela musicalidade e pela teatralidade, caracterizada por seu cunho humorístico e dramático, ao tentar interpretar a realidade pela ótica do espetáculo. Desse modo, o mangolão é intrinsecamente performático, necessitando de uma mise-en-scène para expressar seu pensamento. Pelo caráter artístico da ética mongoliana, ela torna-se uma linguagem de celebração e homenagem da vida e das paixões. O mangolão é uma ética, assim, essencialmente afirmativa da existência e de suas adversidades.
            Numa realidade cinza e niilista, proveniente da ótica fria da cultura pós-industrial, o mangolão surge como a emoção que fora desdenhada desde Sócrates e Platão, que buscavam a verdade além do próprio cerne do conhecimento: o próprio ser humano. A tragédia grega e a mitologia pré-socrática centralizaram a verdadeira origem do saber filosófico, que é antropológica. Assim, os mitos gregos abrigavam a sabedoria, por exaltar as emoções mais profundas do ser humano, desprezadas pela cultura e pensamento ocidentais herdados pela filosofia socrática. Apenas milênios depois, com Nietzsche, Freud e Dostoiévski, na filosofia moderna e contemporânea, que o conhecimento focou-se novamente ao seu centro, na realidade irracional do processo humano. Como esperado, a filosofia contemporânea teve como conseqüência uma crise da razão e do positivismo, que viam fielmente as respostas na própria ciência. Com os filósofos de cunho irracionalista, não mais havia uma verdade absoluta e metafísica, ou seja, destruiu-se a verdade que toda a história da filosofia buscou, desde Sócrates até Kant. Instaurou-se, desse modo, a verdade das emoções e paixões mais abismais, após constatar-se que a realidade humana é movida por desejos cegos e forças brutas que almejam incessantemente o poder e a vitória. Um dos primeiros filósofos a inserirem essa concepção irracionalista do mundo foi Schopenhauer, um dos últimos metafísicos. Nietzsche recuperou o pensamento de Schopenhauer, e esses dois pensadores influenciariam a tese psicanalítica de Freud, a medula da psicologia contemporânea. A filosofia contemporânea não mais buscou verdades-além, realidades inteligíveis, alma ou essência, mas deu-se importância à complexa rede de desejos que move a vontade humana. Não almejou-se mais verdade absoluta, mas quis-se buscar como tratar a vida com relação à essa realidade cega, mutável e caótica (vide existencialismo). É nessa filosofia irracionalista e contemporânea que o mangolão reside.


sábado, 7 de março de 2015

Neolesbianismo: uma análise sociológica

Sappho and Erinna in A Garden at Mytilene, Simeon Solomon

            Desde o início da contemporaneidade, mais precisamente a partir da revolução sexual, nos idos do século XX, surgiram os primeiros exemplares da classe que aqui é objeto de análise. Antes de tudo, é necessário examinar o termo que intitula a redação: o que seria o neolesbianismo? Malgrado o que o nome indica, o “neolesbianismo” não designa necessariamente o comportamento homossexual entre mulheres; “neolesbianismo” significa, antes de tudo, um comportamento adquirido a partir da fragilização do pensamento dualista e heterossexual das relações. Desde quando tornaram-se reconhecidas como naturais relações que iam além do padrão maniqueísta homem-mulher, as primeiras neolésbicas surgiram. Não como um mero comportamento sexualmente atípico, mas sobretudo um fenômeno cultural e histórico, que envolve implicações sobre gênero, identidade etc. Portanto, o neolesbianismo, além do que o signo aponta, não habita apenas esferas sexuais, mas behavioristas.
            O prefixo “neo” já norteia uma lógica que torna o lesbianismo, já há décadas reconhecido como orientação e não como patologia, num comportamento ainda mais contemporâneo. Para além dos trejeitos estereotípicos da homossexualidade feminina, o universo neolésbico agrega não apenas mulheres legitimamente homossexuais, como também mulheres heterossexuais. A neolésbica é aquela mulher “prática e contemporânea”, que escancara toda a liberdade sobre o seu próprio corpo em visuais diferenciados, como cabelos curtos e combinações extravagantes de roupas e adornos. Como o neolesbianismo é um comportamento, a mulher neolésbica, em contradição à feminilidade, carrega em seu jeito de ser elementos pertencentes ao universo masculino, exalando autoridade e rudeza. Todavia, já que seu corpo físico é naturalmente feminino, gera-se um grande paradoxo entre o comportamento masculino e as feições femininas, moldadas fisionomicamente na delicadeza e na sutileza típicas deste sexo.
            Entrando mais a fundo numa esfera de fato sexual, temos um famigerado elemento que suscita em campos além dos limites corporais: o pênis. É sabido que o falo, ao longo da história humana, não representou apenas um dos básicos coadjuvantes da cópula, mas tornou-se um símbolo de poder: em épocas mais primitivas, um falo ereto era símbolo de intimidação, denotando autoridade. No entanto, devido a divergências culturais, o poder foi sendo imposto a partir de outros significantes. Mas o que teria isso a ver com a teoria do neolesbianismo? Investigando friamente a relação sexual tradicional, é sabido que o sexo, para além das suas finalidades, é um legítimo jogo de poder: há o elemento ativo (homem) e o elemento passivo (mulher). Na homossexualidade masculina, malgrado a troca de papéis, o jogo de poder ainda sobrevive; contudo, na ocasião do sexo lésbico, já que não há o elemento de poder (falo), torna-se impossível o tradicional jogo de poder de forças díspares: não há mais o conflito entre o pênis e o orifício. Entretanto, contradizendo os limites anatômicos, a perseguição obsessiva pelo poder, ou seja, a vontade de ter um pênis supre toda a insuficiência. Deste modo, não importa a fisiologia: a ânsia mais intrínseca pelo poder do falo já o substitui por completo. É isso que torna o cerne do neolesbianismo tão fascinante.

            Portanto, o neolesbianismo é a resposta para a grande questão que pairou sobre campos da psicologia e até mesmo da biologia; as mulheres neolésbicas, com seu comportamento livre de rédeas conservadoras, alcançam a amplitude do espectro sexual humano e são mais uma feliz tentativa de ruir os limites que, em toda a história, segregaram e simplificaram as diversas esferas da sexualidade e do comportamento do ser humano.