sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Metal, raio, relâmpago e trovão: biografia de uma legião II

          Renato Manfredini Jr. Nasceu a 27 de Março de 1960, no bairro Humaitá, capital fluminense. Filho de um bancário (Banco do Brasil) e de uma professora de inglês e dona de casa, primos de segundo grau e descendentes tanto de italianos da Sesto Cremonese (comuna, ao Norte da Bota), quanto de pernambucanos. O casal concebeu o rebento e, alguns anos mais tarde, a caçula, Carmen Teresa.

         Júnior fora uma criança como qualquer outra: pulava corda, empinava pipa. Já na alfabetização, vislumbrava-se o gérmen do que viria a desabrochar em anos ulteriores: fizera uma de suas primárias redações em caligrafia cursiva hábil e gramática cristalina. Seu pai, estudioso e austero, influenciara o primogênito com seu tino educativo: fez do filho um leitor voraz. Quando Renato contava por volta de oito anos de idade, seu núcleo familiar se mudou para Nova Iorque. Lá, em meses, mostrou fluência na língua inglesa (mais tarde em sua vida, receberia, no Brasil, o príncipe Charles inglês, numa situação diplomática).

         Cinco anos depois, a família volta ao seu lócus originário, só que diretamente à capital principiante: Brasília. Arquitetada sob a égide de Le Corbusier, a cidade fora compartimentada com a meticulosidade de quem abrigaria trabalhadores de cada estrato social, conforme cada camada da burocracia brasileira. Logo, a família Manfredini se situou no território brasiliense enquanto encabeçada por um funcionário público. Aos arredores, blocos assoberbados de militares (sim, da mesma casta dos que à época regiam o País) e professores universitários.

         A arbitrariedade do destino do jovem Manfredo lhe abençoou com uma doença óssea, chamada epifisiólise. Durante o tratamento, teve-se um segundo azar: erro médico, por colocação de um pino numa área indevida do tecido ósseo. Dores lancinantes e, tecnicamente, paralisia. Renato Manfredini Jr. seria em breve internado no próprio quarto, cuja decoração remontava uma idílica Londres, que, ideal, imbuía-lhe os pensamentos – e os de todos que o visitassem – de sonhos distantes.

         Seria a fase decisiva de sua vida como artista (no sentido mais concreto e célebre do termo): leria o triplo ou quádruplo do que lia; ouviria o quíntuplo do que ouvia, de Beatles ao que mais fosse; e, sorveria o sêxtuplo do que sorvia de Melody Maker e o que mais calhasse de matéria sobre música. O interessante (para nós, seres do novo milênio) é que os professores ginasiais do menino confiavam a ele a resolução caseira das provas. Talvez, porque uma viagem de cadeira de rodas até as bibliotecas municipais parecesse demasiadamente desgastante ao coitado.

         Renato não passou na UnB, mas na Ceub. Recuperado da perna, atravessava o céu como uma flecha detida por um arco há muito retesado. Em meio à savana, não só a do Cerrado, como à da própria cultura daquele urbanismo salobro, nada melhor calhava que o tal do punk (uma importação de guitarras distorcidas e acordes de tosquice plena de contundência, diretamente da Grã-Bretanha). Faltava pubescência a uma música popular refém do pastiche tropicalista e da Solange, a uma só vez. Que fossem garotos com acne, gritando e palhetando suas Fenders; era, ao menos, algum ruído com decibéis bastantes aos ouvidos morosos. As caixas de som ecoavam, talvez, até o contíguo Pantanal. Os jovens iam à lanchonete e fruíam algum evento, sem precisarem rumar para o Eixo Rio-SP. Paralelamente às apresentações com o Aborto Elétrico, Renato era graduando em Comunicação Social (Jornalismo), e pensava em seguir carreira diplomática. Chegou a ministrar aulas de inglês, até ser demitido (extrapolou, na empáfia do tutor visionário). Outrossim, participou de alguns programas de rádio, enquanto locutor.

         A música brasiliense ecoou até a Mata Atlântica. Lincoln Olivetti sofreu um nocaute da nova produção fonográfica. Não havia mais lugar às horn sessions. Na medida do possível, dentro dos horizontes protocolares da indústria, arranhava-se as tortuosas guitarras elétricas nos estúdios cariocas da EMI. Nesse ínterim, a história de Renato-agora-Russo se mistura com as circunstâncias. Mudado geograficamente, graduou-se, mas se via de volta à sua cidade natal; não para um acalanto, mas para o risco: lançar o primeiro disco.

         Já se ouvia guitarras pelo Sudeste desde 1982. A Legião entrou de fato na onda em 1985, fazendo o sucesso de 50 mil cópias imediatamente vendidas, com um álbum homônimo. Embora a verve provincial pungisse, “Legião Urbana” tinha direito a uma baladona (Por enquanto).

         Renato era culto o bastante para que soubesse explorar tais territórios desconhecidos. Em contrapartida, à maneira assincrônica dos talentosos, cortou os pulsos, como “aviso” de que não mais queria tocar o baixo. A incumbência do instrumento ficou com o grande Renato Rocha (saído da empresa no terceiro disco; não sem deixar sequelas*).

         Cortar os pulsos era ficha, se o caso é comparar tal prática isolada ao frequente e abusivo uso de pó e álcool da década, a que Manfredo era afeito. Dispensava refeições (e as substituía por iogurte), e com seriedade se engajava nas farras, sobretudo as bioquímicas; tudo a que o jovem adulto precocemente próspero se dá (vide craques do futebol que violam, e os que portam armas com numeração raspada, e os que falsificam documentos de identidade...). Ia dos 65 aos 50 kg; voltava. O pássaro novo, quando longe do ninho, não tem limite.

         “Dois” incluiu pandeirolas e violões. A Legião Urbana surpreendia com o fenótipo folk. As letras quilométricas eram destras ao codificar os sentimentos ambíguos dos pós-adolescentes de classe média. Renato parou de beber, ao encarar a responsabilidade que se escancarava ao palco. Seu transe era demasiadamente poderoso para que abusasse da plateia com suas flutuações internas. Mas, é provável que fumasse unzinho, vez ou outra, retornando à ativa com radicalismo no ano seguinte.

         O show do Mané Garrincha foi a prova mais conspícua de que o delírio coletivo pode seguir caminhos próprios; inclusive, caminhos destrutivos. Isso, porque um recém-lançado questionamento, “Que país é este?”, é capaz de incutir, no inconsciente impessoal, um amálgama efervescente de ressentimentos externos e internos: a situação sociopolíticocultural e a subjetiva idiossincrática. A pulsão de morte, logo, venceu a pulsão de vida, naquela noite. O bastante para que a banda mais feliz do Brasil insurgisse em roupagem completamente diferente, mais de um ano depois.

         “As quatro estações” citava Deus e santos. Novas metáforas, novos recursos imagéticos. Ar de amadurecimento etáriofisiológico. Aura oriental, sobretudo em Feedback song..., para lembrar os 60s. E a poética, cada vez mais, bem trabalhada. A esse momento, Renato se embebedou e cheirou por um ano. Asilou-se no Marina Palace. Em breve, encontrar-se-ia em San Francisco. Conheceu o amor de sua vida e o formou, aqui, longe demais da capital homoerótica. Quis ser o preceptor de Scott: ensinou-lhe o beabá com Jack Kerouac. Isso, porque Robert S. Hickmon fazia o tipo atlético, disléxico, white trash, diametralmente oposto àquele de seu amigo: cerebral, intelectual e bem-nascido. O primeiro e único amor da vida de Renato, provavelmente (exceto o ulterior e hermético Cristiano); por isso, a perdição, quando do rompimento. Scott era soropositivo: fora acometido pela peste emergente. Mal Renato se assumia para si mesmo (depois de se assumir para a imprensa), contraía a morbidade fortemente associada à sua orientação.

         A situação se recrudescia face ao seu contexto: era a época da assunção sérica de Cazuza. Seu rosto plúmbico de AZT, escaveirado, e suas pernas pneumáticas, neurotizariam a população relativamente à “doença gay”. Ergueu-se, portanto, mais uma coluna no metafísico pilotis de preconceito em relação à homossexualidade.

         O Manfredo descobriu a própria positividade meses após a sucumbência de Agenor. Declinou do abuso de estupefacientes, ao ponto de se contentar tão somente com canabinoides e benzodiazepínicos. Escreveu as letras do álbum “V” sóbrio. Estudava Idade Média e Cruzadas. Desenrolava-se a era em que Collor se mostrava como o primeiro – ou o mais emblemático – Nero da República incipiente: o Império dos Abacates ruía, e o anjo exterminador nascia, no berço da Casa da Dinda.

         Chegada a turnê, caía a ficha de Renato; o que o fazia beber uísque em copões de suco de laranja natural, ao longo das madrugadas. Quebrava um e outro móvel dalgum hotel cinco estrelas qualquer, em Aracaju. Turnê cancelada. Dessa vez, Júnior quis nocautear um fígado já baleado por uma comórbida hepatite. Vivia à toda ao modo junky de ser, até que se decidiu pelos Doze Passos (programa de reabilitação do alcoolismo e da toxicomania).

         Voluntariamente limpo, desenvolve com o grupo “O descobrimento do Brasil”: uma descoberta menos tropicaloide que renascentista. O role-playing, o bandolim e as flores, presentes na capa do álbum, não remontavam nenhum “Panis et circensis” (diferentemente dos músicos de apoio*), mas um painel árcade, bucólico, escapista: era precisamente este o achamento. Muito bem estabelecida na burocracia da produção e divulgaão de discos, a Legião podia brincar mais do que nunca com as pieguices e clichês. Só por hoje e Vamos fazer um filme formam o cume desse processo. A substância propriamente literária seguia a marcação progressiva dos álbuns anteriores: criatividade e polimento ainda maiores.

         A terapia ocupacional de Renato, acompanhada do ovacionado Prozac, foram dois álbuns: em inglês e em italiano, conforme respectividade cronológica. Num, quis brincar com a música norte-americana pré-Elvis; noutro, mais seriamente com o cafona do popularesco itálico. Vê-se que a breguice é uma tônica em Renato, o qual pode ser que se visse entediado face à incompreensão recorrente, tanto por sua superioridade verbal, quanto por seu direcionamento romântico. Já que era o operário número 1 da major, podia, virtualmente, fazer o que quisesse (contanto que não excedesse os limites contratuais). Eventualmente, com os asseclas, pixaria os carpetes da sede carioca, para fins de protesto. A vista grossa dos grande burocratas se fundaria na tergiversação de que se tratava de um “ato de rebeldia”, quando se pensou o que se faria com os trintões dengosos.

         O adulto Manfredo sofre outra vez: separa-se do folclórico Cristiano, tem uma recaída, e abandona a produção do “Equilíbrio distante” para voltar um mês depois. Ao cabo, com a extraordinária popularidade que o CD galgou, Renato tramitou a adoção de Laura Pausini pelo italômano Fausto Silva. Com o álbum em inglês, também pare Zélia Duncan. Vira, logo, uma espécie de deus, também entre os intérpretes brasileiros (fora o posto de voz e, sobretudo, de letras, no cancioneiro popular).

         Inicia-se a produção de um novo disco com a Legião. Virtualmente, ele debandaria ao pop. Ideias de letras. Entretanto, entra-se rasteira a fase sintomática: a Aids propriamente dita se insurge precisamente em meio aos planejamentos laborais. Deixa de ser escabiose e tosse – inconvenientes de somenos importância – para se tornar bronquite, esofagite, gastrite, traqueíte e, por fim, pneumonia. O teor do álbum se transmuta, com as letras e o canto progressivamente mais macilentas e achatadas, muito mais tétrico do que aquele que inicialmente se idealizou.

         A lacuna espiritual entre a feitura dos arranjos, apresentada numa gravação do início de 96, e o estranho produto vocal e discursivo, enfileirado aos montes nas Lojas Americanas, em Setembro do mesmo ano, traduzem o nexo possível do elo inspiração-trivialidade. Ao menos, no processo composicional de um estilo lírico, visto na Legião. O declínio da voz de Renato traía a presença de um som mais soberbo, denso: é possível perceber os resultados de uma alforria, dadas a direção e a produção artísticas atribuídas ao próprio Dado Villa-Lobos, ao invés de a um operário nato da multinacional. O artista definhava, em meio a tempos sobranceiros (e de uma tecnologia cada vez mais arrojada*). Aliás, dizia-se no meio médico que o humor de pacientes aidéticos mantinha íntima relação com sua sobrevida: quando o acometido preservava a sua capacidade de se satisfazer, chegava-se a dez anos, três a mais que a média da época. Contudo, Renato tinha pressa, e seu muscular profissionalismo fê-lo preferir o imperfeito ao absolutamente não feito. No fim, o resultado basicamente sonoro é mais criativo e mais potente, malgrado a lamentável performance vocálica em várias faixas.

         Estaria o cantor e letrista satisfeito com o resultado?

         O adulto Manfredo não mais teria estamina para sair da casa em Ipanema até o estúdio na Barra, tão frequentemente. Aparecia uma hora ou outra, amparado por uma bengala. Brigava muito pelo telefone: estava especialmente hiperativo e imperativo, a um só tempo. Os músicos se ressentiam. Como quando cortara os pulsos, tentava subliminarmente comunicar decisões categóricas por meios escusos: não sabia agir doutra forma. Assumiu o que lhe afligia com o empurrão de sua impulsividade de dependente crônico, a um de seus músicos: “to doente, porra” foi o que ouviu o tecladista Carlos Trilha, que também proferiu ao líder suas mágoas quanto à imprevisibilidade do Homem no trabalho de estúdio.

         Terminados os trabalhos, Renato se decide por permanecer esquivo à vida exterior. Tocava um Schubert aqui, ao piano; lia um Bom crioulo (Adolfo Caminha) ali. Até que seu corpo não mais conseguisse manter ortostase, devido à caquexia e à anorexia que a doença e o agressivo tratamento do obsoleto coquetel proporcionavam ao corpo judiado. Àquele tempo, Aids significava estigma, traduzido em olhos profundos, pescoços famélicos, zigomas conspícuos, flancos translucentes, fácies lívida. Exatamente por isso, juntamente a uma neuro-Aids acentuada, fazia-se muito mais fácil simplesmente não reagir à fatalidade dos arbítrios numênicos. Mostrar a cara numa clínica São Vicente e virar um “agonizante público” condicionaria, no cômputo final de tudo, marcar a obra de seus álbuns com demãos das matizes cinza chumbo dos colaterais medicamentosos; sepultando, em vida, a aura eminente de seu espírito criador. Sua discrição lhe salvou de ser visto como menor que o jovem e ultragenial Noel Rosa.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Lobão, Rogério Skylab, Júpiter Maçã e Renato Russo

 

         Lobão. Rogério Skylab. Júpiter Maçã. Renato Russo. Quatro nomes, os quais podem se mostrar díspares, tanto entre si, quanto dentro de seus próprios microcosmos. A ordem em que os dispus nesta listagem não diz respeito exatamente à gradação de contraditoriedade (ou, ao potencial de contraditoriedade) de cada um; conquanto Lobão talvez seja o mais emblemático, nessa tétrade, na qualidade sobre a qual se mencionou. João Luiz Woerdenbag Filho, em sua persona artística, capitalizou o Paradoxo, mesmo num trabalho de autoanálise: um rockstar, por excelência, um enfant-terrible dos mais conspícuos da geração 80, nutrido da mais barroca das variações do rock – o progressivo –, fora enxotado do seu cenário principal precisamente por sua cada vez mais obsessiva afecção pela tradição do samba: incluiu Elza Soares em seu álbum O rock errou de 1986 (nenhum outro título de álbum melhor descreve seu fenômeno); e, ingressou em pleno Rock in Rio, conjuminado a uma escola de samba. Matou-se, então, o “roqueiro” Lobão. Posteriormente, educou-se de forma autodidática no violão clássico e reestreou, já nos anos 90, com um álbum imbuído na tradição sambística: Nostalgia da modernidade. Mais tarde, ao auge de uma iconoclastia póstuma (primórdios dos anos 2000, quando os cabeças da geração 80 “morreram de overdose”), lançou o brilhante A vida é doce: moderníssimo – trip hop, eletrônico – e, ao mesmo tempo, com fumos de bossanova. Comungou-o com o Brasil em tiragem independente, atingindo altas vendagens, aquém do tacão da indústria fonográfica. Pioneiro.

         Posso dizer que Rogério Skylab é o primogênito desse parricídio. Sua série dos Skylabs foi iniciada pontualmente quando as grandes indústrias fonográficas sucumbiram. Como se isso não bastasse, Rogério quis ainda dissecar o cadáver do pai: fruiu uma escatologia que superou mesmo a proposta de um esdrúxulo Cabeça dinossauro. Paradoxalmente (ou não), pungia fenótipos da tradição; afinal, o pai assassinado não deixa de ser... pai. Skylab é o maior exemplar da derrocada definitiva do rock mainstream.

         Quanto a Júpiter, há nuanças que configuram uma maior complexidade em sua trajetória. Com os Cascavelletes, foi um filho bastardo da geração 80. Isso, porque o rock portoalegrense, rebento também oitentista, mas que só concomitava com o mainstream dos 80 em nível cronológico, em nada coadunava com a verve new wave-like, inglesa, de seus contemporâneos do Eixo Rio-São Paulo. Cascavelletes era Stones com sacanagem: era outra coisa; farinha do mesmo saco ipanêmico, não eram. Despontaram lá e cá nos clássicos programas globais de auditório (vide Angélica). Mas a vivência do “oitentismo” foi substrato de popularidade e atenção ao que viria uma década depois. Primeiramente, A sétima efervescência: early Pink Floyd, psicodelia, remontando um Mutantes 60-70s. Outra proposta, de inovação relevantíssima à aura de luto que predominava com a desintegração proporcionada por Collor, axé, sertanejos e AIDS. Em seguida vem Plastic soda, um experimentalismo aliado ao jazz-bossanova. Hisscivilization é o cume do ludicismo sonoro, com tudo misturado. Mais tarde, Uma tarde na fruteira cristaliza Júpiter como ícone cult dos 2000 pra frente.

         Vale lembrar a trágica entrevista no Matador de passarinho (programa encabeçado pelo próprio Rogério Skylab; uma celebração da decadência), que retratou com muita destreza e sensibilidade a extinção da espécie rockstar-decadente-drogado-clube-dos-27. Entupido de downers, Júpiter se levou, num groove nonsense, à derradeira estereotipificação do clássico “tomou LSD e nunca mais voltou”. Flávio Basso morreu cerca de um ano depois do evento.

         Por que, agora, falar de Renato Russo, se o que até agora se dissertou foi sobre outsiders pur sang da música brasileira? Porque... paradoxalmente, a Legião foi a banda da sua geração que menos flertou com a tradição da MPB. E, sobretudo, foi a que capitalizou o mainstream de sua época. Renato transcendeu o métier, tangendo as raias do beletrismo: inspirado nos Pessoas, Drummond, Shakespeare (lendo-o, inclusive, no original), não era mais apenas um letrista. Virou arauto. Esteticamente, no entanto, a Legião Urbana era uma manufatura sonora um tanto quanto amadorística, dada a deficiência técnica e a pobreza de formação musical propriamente teórica. Não fosse a tergiversação na fonte punk-DIY (do it yourself), superariam o panteão setentista: Tim Maia, Jorge Ben, Novos Baianos etc. Seriam o maior grupo musical da história do país. Não teria sido pela assertiva negação ao chicoecaetanismo seu triunfo? Certo é que, entre os quatro nomes aqui analisados, Renato e Legião não foram crescidos da “Tradição”. Provinham doutra genética, estrangeira; “colonizados”, par excellence. Aos trancos e barrancos, Renato e Legião mantiveram até o fim o seu centro de gravidade, sem nenhum pendor à “síndrome de dignidade intelectual” conceituada por Lobão. Não teria sido este o verdadeiro parricídio?

         Que fiquemos neste ar de vaga nostalgia, como quem vasculha antigos retratos de velhos álbuns de fotografia, enquanto tudo o mais cada vez mais se pulveriza.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Herói entre existências


Se a vida existe, ela necessita ser vivida. Viver a vida é uma urgência biológica: o estômago ronca e a boca saliva por alimento, os órgãos baixos avisam que se precisa excretar etc. Há um monstro que rutila por vida dentro de nós, há esse querer, há muitos quereres resplandescentes, há esse Desejo reverberante. A vida pede por vida! sem cessar! A vida de um corpo morre, mas este mesmo é sempre abrigo de outras vidas que se multiplicam exponencialmente, em infinita potência. A vida pede por vida! A vida se alimenta de vida, que se alimenta de vida, que se alimenta de vida...! Se a Mulher Natureza nos pôs um par de olhos dispostos desta forma que aí está, foi por alguma razão, nalgum ponto de nossa lapidação incessante pelo Todo complexo que constitui este mundo. Se a Mulher Natureza nos plantou sobrancelhas, foi porque o salgado suor não nos poderia cair nos olhos, enquanto fugíamos dos tigres, correndo na savana! Se a Mulher Natureza nos moldou com um apêndice, é porque nalgum ponto de nossa existência enquanto humanos precisamos digerir a excessiva celulose! E, se esta mesma apêndice não nos causa, hoje, nada além de moléstia, é porque assim há de ser! Se sofremos; se o sofrimento é uma verdade; se o sofrer é um verbo intransitivo, é porque assim há de ser! Se não somos capazes de sobreviver nesta existência enxuta é porque sofremos - e este sofrer não constitui uma objeção à própria vida, mas apenas mais uma verdade da existência. O sofrer é uma existência desumana que existe na existência que é cada um dos humanos. E ser humano não é "Ser Humano" (o humano pode ser chamado de Ser Humano na medida em que a pedra for chamada de Ser Pedra), mas uma existência equivalente à de um rato ou à do vento. Existir é, sim, absurdo! Velhos e criancinhas atravessam ao seu lado, uma bola de fogo flutuante num céu cor de azul lhe queima a cara, a a garoa respinga e pinta de mais escuro o asfalto... e nada faz sentido! As árvores se agarram tão firmemente à terra, as raízes das árvores perfuram como garras o asfalto... e tudo continua a não ter sentido! Mas, ah, só a arte, só a Arte, só A Arte, só A Arte! é o que salva! Sevastra: quer-se sentido quer-se significado, porque quer-se justificação da trama deste absurdo que é este conglomerado de existências que tece a nossa vigília! Quer-se sentido, quer-se significado - quer-se, quer-se, cada vez mais! Absurdamente, demasiadamente: quer-se! A Arte não há de ser o ópio, não há de ser o nosso atalho a um "Paraíso"; mas há de ser o próprio fundamento da Vida! A Arte há de ser a própria existência, as próprias existências, em conluio, na direção inescapável, no nobre destino de um desfecho! Não há de se buscar teleologia aristotélica, não há de se encontrar teleologia onde não há - a Vida é um absurdo, sem finalidade alguma! Mas, há Arte, não como ópio, mas enquanto Vida multiplicada duas vezes, enquanto o Absurdo for como matéria-prima! A Arte não há de ser ópio! tampouco hão de sê-lo estas linhas torpes! Nem a Arte nem a Filosofia hão de ser ópio para o aborrecido, mero divertimento para o entediado! Se falar em moral fizesse sentido, eu diria que ser inteligente e buscar conhecimento seria uma obrigação moral! Tratar o conhecimento como passatempo é uma desonestidade intelectual. Ser inteligente não é um acessório a uma existência, mas um dos próprios critérios, um dos próprios pré-requisitos, desta! Um indivíduo inteligente há de ser inteligente, do modo que for, no ambiente em que estiver; caso contrário, morre! Inteligência é adaptação: inteligência animal é adaptação ao ambiente concreto; inteligência humana é conhecer o ambiente metafísico! Inteligente é quem alcança o sentido de sua vida - quem não o possui, nem enquanto vício ou paixão, morre enquanto deformidade perante a Mulher Natureza! Viver é uma obra à Mulher Natureza; uma obra dedicada a Esta! Somos todos, enquanto existências, servos da Mulher Natureza! Viver, do modo que for, é a nossa maior e única obra! Há de se viver, há de se suportar existir, seja enquanto herói, seja enquanto assassino - mas que se viva! Porque até mesmo o assassino, enquanto existência assumida, pode se elevar à magnificência de um herói entre existências.

domingo, 2 de outubro de 2016

(Mais) um ensaio crítico sobre a filosofia de Friedrich Nietzsche


Para o Nietzsche tardio, a vontade de poder, um de seus conceitos principais, tornou-se a causa prima do mundo, conjetura cujo cunho metafísico sempre fora negado em sua fase mais empírica. Heidegger, aí, poderia ter razão em retirar o posto de Nietzsche como primeiro filósofo não metafísico e atribuir tal classe a si mesmo.
A vontade de poder consistiria numa substância do mundo, responsável por propelir o movimento constante do devir, do próprio vir-a-ser heraclitiano. O mundo, assim, seria uma batalha incessante e cega de forças entre si, sem nenhum objetivo. Tal vontade de poder seria o fundamento do mundo, sendo este uma matéria finita. Consoante o raciocínio de Nietzsche, visto que o tempo é essencialmente infinito, uma matéria limitada num tempo ilimitado seria condenada a repetir-se permanentemente. Portanto, conforme esta lógica, o mundo se repete infinitamente, bem como o homem, portanto, e todas as outras formas sob as quais a vontade de poder já se manifestou. A esse processo, Nietzsche chamou de eterno retorno do mesmo, pensamento também fulcral no ideário do filósofo. Nesta conclusão, o pensador alemão tangeu tanto a metafísica da qual se abstinha desde o cabo de sua primeira fase quanto o cientificismo de seu tempo, que tinha o darwinismo como seu principal expoente. Entrementes, Nietzsche não se contentou com uma ideia puramente científica e ao mesmo tempo metafísica, mas a expandiu para o âmbito da psicologia. Utilizando uma perspectiva pragmática, que se questiona a respeito das implicações práticas das verdades, Nietzsche conjeturou acerca das consequências que o eterno retorno do mesmo pode introjetar no mundo humano. Assim como Kant utilizou a ideia de um ente divino como um regulador moral da vida humana, Nietzsche usufruiu sua doutrina do eterno retorno como reguladora da existência prática do homem. Desse modo, no caso de Kant, o homem deveria comportar-se como se existisse um deus, ou imperativo categórico, mensurando suas ações; para Nietzsche, forte seria o ser humano que aceitasse o eterno retorno do mesmo como uma verdade prática, ou seja, como se a existência se repetisse infinitamente e idêntica ao que foi. Portanto, o homem forte afirmaria sua vida de forma igual e infinda, em todas as suas alegrias e vicissitudes. Tal ideia culmina num dos vértices do triunvirato conceitual nietzschiano: o além-do-homem. Este, assim, baseia-se na ideia de um homem em constante autodesenvolvimento, externando a sua vontade de potência tanto no domínio de outros quanto no domínio de suas próprias forças internas, superando a si próprio e a toda espécie humana. O além-do-homem provavelmente é, em Nietzsche, o aperfeiçoamento da ideia de gênio e santo, os quais justificariam a existência de uma cultura, pensamento este abordado na fase primária do autor. A existência de uma cultura, esta compreendida como área de vivibilidade de uma sociedade, fundamentaria-se no pico de encantamento num único indivíduo, o que significa que a sociedade deveria mobilizar-se ao cultivo de uma aristocracia, a qual teria poder o suficiente para uma grande magnitude artística; portanto, criando obras de arte nas quais a sociedade pudesse justificar a própria vida. Aí é que o pensamento essencialmente livre e expansivo de Nietzsche contempla concepções de cunho político e social, idealizando uma cultura baseada num sistema bicameral: um lado vive a expansão artística e criativa do gênio, e outro lado se volta à frieza dos assuntos políticos e morais. Porém, da mesma matriz de seu pensamento aristocrático surgem polêmicas a respeito da inclinação do filósofo a ideias escravistas, contrastando profundamente com os ideais democráticos e socialistas contemporâneos a ele, no século XIX. Para Nietzsche, a fim de que se possa justificar a existência de uma sociedade através da cultura, há de se garantir uma classe que cria e outra que trabalha. Consoante a configuração do mundo greco-romano clássico, o trabalho escravo seria vital para a manutenção de uma cultura, já que se pensava as classes criativas -- portanto superiores -- dignas do ócio. Tal contexto humano de desigualdade que, para Nietzsche, é uma prova da violência inerente à natureza, culminou na ruína do mundo antigo, o que influiu num dos pilares da filosofia nietzschiana: a crítica da moral. Já que as classes inferiores da configuração das sociedades clássicas eram encarregadas do peso da manutenção de toda uma cultura, houve uma rebelião por parte deste mesmo estrato social escravo. Tal revolta generalizada ocorreu principalmente no campo espiritual, refinada na criação de uma moral, a qual Nietzsche chamará de moral do escravo. Desde tempos pré-históricos, conforme a análise do pensador, a espécie humana dividiu-se entre nobres e escravos, sendo os primeiros dominadores e, os segundos, dominados. Assim, toda sociedade e toda cultura configuraram-se naturalmente da mesma forma. Os escravos, dominados, sempre sofreram o fardo da submissão, tendo sua força reduzida pela expansão da vontade de poder da classe dominante. Criou-se, pois, um ressentimento nestes dominados, os quais passaram a considerar o seu enfado como uma grande injustiça, o que acumulou forças para a criação do que Nietzsche denominou transvaloração dos valores. Este conceito se fundamenta na ideia de que, neste contexto, os valores nobres foram invertidos pelos valores escravos. Desse modo, os valores de dominância, implacabilidade, audácia e ócio da aristocracia foram destituídos, sendo substituídos pelo estabelecimento das características especificamente escravas, como a obediência, a humildade, a compaixão e a aplicação. Tais características, outrora sintomas da fraqueza, tornaram-se virtudes, construindo-se um ideário moral em busca do triunfo dos malogrados sobre os nobres. Porquanto para Nietzsche esta distinção de classes é uma nuance natural da crueldade do devir, a transvaloração escrava dos valores nobres estabeleceu-se não como um conflito de forças positivo, mas como a ascensão de uma vontade de poder negativa: ao rebelarem-se contra a estrutura desigual da civilização, os escravos instituíram uma moral que negava a vida. Enquanto antes a aristocracia dominava com sua vontade afirmativa de vida terrena, a moral escrava criou um único deus, conceitos de "bem" e "mal" -- substantivando o que eram outrora meros adjetivos, "bom" e "mau" -- e um universo imaginário, a fim de que o sofrimento terreno do escravo fosse suprimido num "Além". A escravidão transvaloradora de valores, pois, foi a acumulação milenar de forças oprimidas que insurgiu de modo tirânico, transformando em ruína a antiguidade clássica e institucionalizando uma religião, que concentrava todo o ideário de rebeldia escrava: o cristianismo. A doutrina cristã, desse modo, expandiu-se mundialmente, sendo uma grande vitória dos valores escravos sobre os nobres. Sabendo-se que, para Nietzsche, o mundo da experiência, ou o chamado "mundo aparente", é o único dos mundos possíveis, o triunfo do cristianismo tornou-se peculiar ao alcançar poder a partir da negação do próprio "mundo aparente", em prol de universos-além, isto é, mentiras. Logo, apesar de sua crítica cáustica à moral cristã, Nietzsche vê-se ainda mais crente numa transvaloração dos valores, só que utilizando seu além-do-homem como porta-voz, o qual promoveria justamente a recuperação dos valores aristocráticos pré-cristãos. É inegável que o triunfo do cristianismo foi efeito de uma grande explosão de forças criativas, sendo tal energia artística algo que o filósofo alemão primou ao longo da história de seu pensamento. Entrementes, o pensador, que chegou ao ponto de conjeturar soluções genocidas para o extermínio das populações herdeiras dos valores escravos, critica o ascetismo e a periculosidade do sacerdote, embora ele mesmo seja, em sua filosofia, um asceta. Para além da postura afirmativa da vida que corrobora em seu pensar, Nietzsche, pois, é um asceta que se abrigou em verdades eternas e metafísicas, tal qual o cristão, que se fundamenta em mundos imaginários, aos quais o pensador alemão tanto se opôs. A filosofia nietzschiana, aí, enverga-se contra si mesma; o que não faz, porém, desaparecer sua importância na história do pensamento humano, ao influenciar as diversas vertentes do conhecimento que proporcionaram novas interpretações do homem.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Ultraconservadorismo transcendental

UMA DOUTRINA


Enquanto Kant tem seu "idealismo transcendental", eu crio a doutrina do "ultraconservadorismo transcendental".
"Ultraconservadorismo" porque contempla a amplidão de sentidos que o conceito "conservadorismo" suscita, este hoje, em seu sentido ordinário, sinônimo de favorecimento à diminuição do Estado e à exploração de mão de obra, dentre outros pensamentos. "Transcendental" porque transcende tanto a noção presente de conservadorismo, bem como supera o limitado antagonismo existente entre liberalismo e marxismo.
O ultraconservadorismo transcendental consiste numa espécie de conservadorismo não fundamentado no liberalismo e no positivismo (como geralmente se caracteriza o movimento dos reacionários), mas no favorecimento de um retorno dos moldes aristocráticos de governo, que remontam aos momentos mais primitivos das sociedades humanas. Tal doutrina, portanto, é tão utópica quanto o marxismo, que almeja retomar o comunismo primitivo das priscas eras de nossa História - completamente inexequível para o ponto a que a raça humana chegou. Qual é o processo evolutivo mais natural não só dos agrupamentos humanos, como de todas as espécies? A formação de hierarquias. Quem está no topo e nos estratos mais inferiores destas? Respectivamente, o(s) mais apto(s) à liderança e os subjugados pelo(s) líder(s). Pensemos numa lógica evolucionista: são os seres mais adaptados que sobrevivem e se perpetuam. Logo, seja o mais forte fisicamente, seja o mais perspicaz, o legislador e comandante deste agrupamento humano triunfou de algum modo sobre os demais. A partir da vitória deste tirano (ou desta oligarquia), toda a matéria humana restante estará sujeita a ele. A massa humana não triunfante será a plebe, enquanto o vitorioso, grupo ou indivíduo, será nobre. As ações da plebe serão delimitadas segundo a livre vontade do dominante.
Alguma semelhança com a totalidade das sociedades humanas a nível embrionário não é mera coincidência - mas, sim, natureza, pureza ingênua dos instintos. O ultraconservadorismo transcendental esmigalha liberalistas e marxistas concomitantemente. Sob este aspecto, pode-se pensar o nazifascismo como única alternativa além desta polarização. Mas, ele foi um produto específico de certa rede de circunstâncias históricas, culturais, econômicas e políticas, enquanto o ultraconservadorismo transcendental, fazendo jus à essência de seu adjetivo, é universal e atemporal. Com isso, qual minha objeção aos marxistas? A filosofia marxista tem profundo valor teórico, especialmente na sociologia. A substância ideológica desta vertente é, de todo, legítima, em sendo um produto da reação das massas à exploração dos capitalistas - legítima como o são todas as forças, mesmo as contrárias entre si, que irrompem de ambos os lados da dialética histórica. A ditadura do proletariado é plenamente justificada, portanto - em sendo uma instauração do poder em sua substância, qual seja, a garantia de evasão dos impulsos despóticos de um líder ou de um povo. No entanto, o objetivo maior do marxismo, isto é, a sociedade comunista, visa à justiça e ao igualitarismo. O que seria a justiça e o igualitarismo, sob uma perspectiva psicológica, senão resultantes da dor do sofredor? "O indivíduo, a sociedade e o mundo têm de ser justos, porque não mais suporto a dor", pensa, nas maiores profundezas de seu ser, o sofredor. "Os indivíduos numa sociedade, inclusive todas as espécies do mundo, têm de ser iguais entre si, recebendo os mesmos direitos, porque não mais suporto a dor", diz o discurso implícito, subjacente, dos modernos (democratas, comunistas, anarquistas) e, também, dos ecologistas e vegetarianos de todo tipo. O sofredor, quando não suporta a derrota diante do vitorioso outro, cria os conceitos de justiça e injustiça, almejando a primeira e lutando contra a segunda. O sofredor, quando não mais suporta a própria derrota, não só clama por paz, como embeleza, espiritualiza a paz - ideológica e/ou religiosamente. O sofredor luta contra a guerra - ele covardemente dispensa a possibilidade de vitória própria, substituindo-a por consenso, paz, amor ao próximo e dialética (de Sócrates-Platão). O marxista, pois, utópico que é, consiste num débil com vestes de ideologia (debilidade esta que, com obstinação, é capaz de alcançar a vitória através de outras estratégias, sem que, no entanto, o fundamento cruel da busca pelo poder se sublime, apesar de seu discurso dizer exatamente o oposto - vide o cristianismo1).
Qual minha objeção aos liberalistas? Eles são atualmente a tese, a norma, hegemônicos que são. Controlam, legislam, preservam - dominam. Nada mais legítimo. Entrementes, os liberalistas é que são hoje os grandes agentes da exploração mais cruel, porque generalizada, destinada a um todo humano de extraordinárias proporções. Tornando a imensurável massa humana existente, por eles assujeitada, num organismo eternamente dependente, arruínam a manifestação da força vital de um povo, com isso sua cultura e, consequentemente, sua justificativa de existir - tornando supérfluos e, no máximo, de alguma forma válidos para o lucro a arte, os ritos, mitos e afins. Os liberalistas transfiguraram uma nobreza legítima, baseada na natureza de indivíduos e povos, em mera aristocracia econômica. Não mais a potência de uma fisiologia ou de uma etnia que determinam os sentidos da história, mas, sim, um produto maior de riquezas materiais e maiores quantias de dinheiro. Instaurou-se, assim, uma floresta de prédios e concreto, em que humanos, bestas em plena energia vital, são amansadas e reduzidas à força energética para mão de obra forçada - uma floresta acinzentada de bestas e de um mundo que perderam seu colorido. Que rachemos o concreto e recuperemos o colorido que nele subjazia - recuperando o colorido do animal-homem, o colorido da vida. Ao menos num ponto os marxistas são sensatos: na sede por revolução.
Somente no ápice do conflito entre tese e antítese, apenas no processo de geração de uma nova tese, é que a velha configuração da vida retorna, qual seja, a guerra - em que se decide, sob o espírito santo da vida, o legítimo vitorioso, que logo triunfará e estabelecerá um novo padrão para a sociedade, girando novamente o palco da humanidade, redirecionando esta sobre novos trilhos - assim o fez cada nome inscrito e eternamente rememorado em nossos registros históricos. Portanto, a brecha em que o ultraconservadorismo transcendental poderá retornar se dá em momentos de crise generalizada, em períodos de profunda desordem, quando ou é tudo ou é nada - isto é, revolução. Sejamos pragmáticos: neste momento específico da história, em que o liberalismo é hegemônico, movo-me para a esquerda, ao lado dos marxistas, pelo mais genuíno desejo de uma crise que, assim, dará a luz para uma nova tese, cuja existência restituirá a ingenuidade do devir2.

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1 O cristianismo do amor incondicional ao inimigo estabeleceu a Inquisição. Objetar sob o raciocínio de que os cristãos inquisidores não eram "verdadeiros cristãos" é uma falácia, a mesma que se propaga dos marxistas críticos de Stálin e a óbvia catástrofe de seu governo socialista - "Stálin não era um comunista de verdade".
2 Ou vir-a-ser, vide filosofia de Heráclito, filósofo pré-socrático. Restituir "a ingenuidade do devir" é libertar a humanidade de ideais que contradizem o movimento constante da natureza, em todo seu horror e delícia. O marxismo, que é a doutrina mais criticada neste texto, destrói a inocência do devir porque condena este por sua crueldade inerente e primordial, ao almejar, por exemplo, uma sociedade de igualdade num mundo intrinsecamente desigual.

terça-feira, 21 de abril de 2015

Por que Nietzsche?

                                                  


            Antes de qualquer tentativa de discorrer acerca das bases do pensamento nietzscheano, é mister analisar um conceito que, nesta filosofia, se apresenta, digamos, de um modo enviesado: o niilismo. O que seria o “niilismo” em Nietzsche? Antes de tudo, é preciso investigar o sentido comum da expressão: no sentido tradicional, o niilismo é a ação ou efeito de negar ou esvaziar valores. A etimologia da palavra já apresenta seu significado: “nihil”, em latim, designa “nada”. O niilismo afetou de várias maneiras o pensamento europeu do século XIX: nas grandes obras da literatura de Dostoiévski, por exemplo,  o escritor russo confeccionou uma coletânea de personagens niilistas, ou seja, negadores de valores. Raskolhnikov, em “Crime e Castigo", por exemplo, precisou negar princípios morais para poder alcançar seus objetivos. No entanto, em Nietzsche, não é desse modo que o conceito atua: para o filósofo alemão, o niilismo é a ação ou efeito de negar ou esvaziar a vida. Ou seja, de algum modo, o indivíduo abandona o devir natural da vida em nome de ideais ou valores supremos. Para Nietzsche, a existência é acaso e desordem, que prevalecem numa batalha constante de forças; ignorar este fato, em nome de princípios supremos, é negar a vida.
            Conhecido este termo, podemos conhecer o ofício e, por conseguinte, a relevância do filósofo: Nietzsche desmascarou os frágeis pilares da cultura ocidental: criticou a filosofia socrática (a julgou “niilista” por delimitar a vida à fórmula [razão=virtude=felicidade] e estabelecer o espírito apolíneo (logos)  hegemônico por sobre o espírito dionisíaco (páthos), duas potências naturais do homem que devem expressar-se em equilíbrio), violentou a filosofia platônica (a julgou “niilista” por desnaturar o conhecimento e a vida ao colocá-los em “além-mundos”, “realidade inteligível” e outras fábulas), verberou corrosivamente a doutrina cristã (a julgou “niilista” por ela propor a antinatureza no lugar da vida, em razão do ressentimento, estabelecendo uma moral e valores degeneradores da vida, como a compaixão, obediência, humildade etc.), contestou impetuosamente seus próprios mestres, como Kant (que estabeleceu a antinatureza propondo uma suposta dualidade na realidade: os mundos numênico e fenomênico) e Schopenhauer (que degenerou a existência com seu pensamento pessimista e escapista para fugir das adversidades do mundo; Nietzsche, aliás, em relação à filosofia schopenhaueriana, criticou o budismo que, apesar de ser “cem vezes mais realista que o cristianismo”, também é um guia para a degenerescência, ao “abster-se da carne e dos prazeres mundanos” e “refugiar-se na verdade do espírito”) e, por fim, contestou duramente ideais modernos, como a democracia e o socialismo, que pautam ambos a existência humana sob a necessidade da “igualdade” que, na natureza, não existe. Nietzsche ostenta um pensamento aristocrático, neste sentido, não sob um aspecto socioeconômico e político, mas espiritual, ao discorrer sobre a distinção natural entre os homens. Logo, propor uma “igualdade de voto” ou “inexistência de classes sociais” seria uma espécie de heresia contra a vida. Contudo, em contato com o espectro de contestações de Nietzsche, qual seria o fundamento de todas estas críticas?
            Para se pensar Nietzsche, é necessário analisar a sentença-chave que se tornou crivo de sua filosofia:
                O homem inventou o ideal para negar o real.”
            A frase supracitada é, talvez, a ossatura basilar do pensamento nietzscheano indispensável para seus estudantes. Todos os alvos para os quais a ponta da lança do filósofo se dirigia eram idealidades, ou seja, projetos ideais e absolutos de vida que o homem “deveria” seguir. No entanto, o verbo “dever”, para o pensador de Röcken, não tem muito sentido: como ele redige em seu “Crepúsculo dos Ídolos”, “o indivíduo [...] é um fragmento de destino, é uma necessidade a mais para tudo que vem e será.”. Ou ainda, como reforço: “Dizer-lhe [ao homem] que “se modifique” significa exigir que tudo se modifique, mesmo o que passou.”. Nietzsche destrói, com esta constatação, todas as convenções que o homem criou para si mesmo, as quais exigiam que o indivíduo seguisse determinado modelo, como, por exemplo, toda a moral e toda a virtude que contrariasse o devir, ou seja, o livre escorrer dos fatos e das coisas, tal qual diz a célebre fase de Heráclito de Éfeso, pensador grego pré-socrático: “não poderias entrar duas vezes no mesmo rio.”. Ou seja, “nada é permanente, exceto a mudança”, e o homem, como parte intrínseca da natureza, também corresponderia ao contexto: daí que seguir modelos fixos, para Nietzsche, é insensato. Portanto, o pensamento deste eremita alemão volta-se por completo contra toda forma de domesticação do homem.
            Seguir padrões estabelecidos de comportamento, como já fora supradito, significa uma forma de tornar o homem doente. Assim, situando-se na cultura moderna na qual Nietzsche estava inserido e, inclusive, assentando-se na contemporaneidade na qual eu, o escritor, nasci, pode-se concluir que vivemos numa cultura doente, no momento em que ainda seguem-se à risca idealidades que, para Nietzsche, no fundo são guias de domesticação humanos. Na encruzilhada da cabeça do alemão, para onde isso nos leva? Para dentro de uma conclusão, que se encontra n’”A Gaia Ciência”: “ – DEUS ESTÁ MORTO! DEUS CONTINUA MORTO! E FOMOS NÓS QUEM O MATAMOS!”. O que significa dizer, na metáfora nietzscheana, que Deus morreu? Ainda: por que nós, humanos, fomos responsáveis pelo deicídio? Leitor curioso, não interprete “Deus” como o antropomórfico velhinho-de-barbas-brancas, criado à imagem e semelhança do homem; saiba, homem trivial, que o bigodudo aglutinou na palavra “Deus” todas as idealidades que o homem havia criado e, agora, as matou. Por que a estúpida raça humana uma vez criou seus ideais e acabou por assassiná-los? Face a face com a mancada de suas criaturas, o homem se deu conta de que seguir ideais absolutos não faz sentido, numa realidade em que o homem é parte integrante das violentas águas do rio heraclítico; o homem ordinário e plebeu deu-se conta de quão tamanha era a estupidez de obedecer a modelos morais, matando estes seus filhotes que não mais servem para consolar a vida. No entanto, as grandes massas humanas-demasiado-humanas, por sintoma de fraqueza, executaram os ideais, mas não abandonaram suas carcaças! O homem matou “Deus”, mas dele não se esqueceu. Parafraseando um trecho medular da ossatura nietzscheana: “Deus está morto, mas seu cadáver permanece insepulto.”.
            Niezsche, que escrevia sob um caráter integralmente afirmativo, não parou por aí; agora, após o deicídio, a questão que irá pairar no seu pensamento é a seguinte: quais as consequências da morte de Deus? O árduo labirinto do cérebro do filósofo desemboca numa conclusão essencial: além-do-homem! O indivíduo que não mais necessita das idealidades (ou “muletas metafísicas”) para se manter no mundo; o homem que encontrar a sabedoria no corpo e na terra, e não em “verdades-além”; o homem revolucionário e sobressalente nas massas, facilmente detectável na história humana; o homem que afirma a vida na mais insuportável dor e na mais grandiosa alegria, e com ela triunfa: este é o além-do-homem. O indivíduo do grande espírito que traz tesouro à humanidade; o grande artista; o homem essencialmente criador de valores; o grande educador; o homem extraordinário, que não se contenta com as meras gratificações humanas; o indivíduo que, em nome da vida e só dela, busca potencializar a existência em sua individualidade, para além dos freios demasiadamente humanos (valores, virtudes, princípios); numa expressão grosseira, utilizando o grandioso exemplo do professor Clóvis de Barros Filho, o além-do-homem é aquele que “não dispensa uma fudela em nome da monogamia”. Em suma, o Übermensch é o indivíduo que vive sem precisar de Deus: é o sentido da terra. Para finalizar este pequeno sumário do pensamento nietzscheano, um trecho retirado d’”O Anticristo”:
                Nós somos hiperbóreos [...]. Além do norte, do gelo, da morte – nossa vida, nossa felicidade... Nós descobrimos a felicidade, conhecemos o caminho, encontramos a saída de milênios inteiros de labirinto. Quem mais a encontrou? – Acaso o homem moderno? “Eu não sei entrar nem sair; eu sou tudo aquilo que não sabe entrar nem sair” – suspira o homem moderno...”.


                                                           FIM

Para ilustrar a ideia de Übermensch, uma canção do álbum Antichrist Superstar, do compositor norte-americano Marilyn Manson:
https://www.youtube.com/watch?v=Ypkv0HeUvTc

quarta-feira, 11 de março de 2015

"Ser mangolão é uma virtude", sob uma perspectiva filosófica

   
O assim chamado mangolão é um termo que designa um comportamento baseado numa ética crítica e propositiva. O mangolão nasce geralmente em sistemas opressores, que restringem o exercício vital da crítica, da criatividade e do livre pensamento. Um exemplo de sistema são as instituições educacionais, que manipulam o aluno como um corpo dócil, ao invés de valorizá-lo como um ser humano legítimo, dotado não apenas de obediência, moral e disciplina, mas também de habilidades artísticas e criativas. O mangolão, assim, surge da necessidade de expor o lado humano emocional, da desmesura e do exagero, para além das meras formas, moldes e estereótipos que o sistema estabelece. Por isso o fato de o tipo mangolão ser tão musical e cômico: nessas duas faces artísticas, musical e teatral, é que se apresenta a metade humana que os sistemas institucionalizados desprezaram e deceparam. O homem, deste modo, não é apenas razão, mas emoção. Tal razão já fora usada em demasia pelos sistemas, contribuindo negativamente à felicidade vital do ser humano de se apresentar por completo, não somente regrado, como também ébrio. Assim, o comportamento mangoliano não é insensato como comumente considerado, mas sim uma resposta, uma reação do espírito humano contra os limites impostos pelas regras estabelecidas pelos sistemas. Sob esta perspectiva, o mangolão seria o ser dionisíaco de nossos tempos, o símbolo da embriaguez e da celebração espiritual, tão desdenhado pelos contemporâneos sistemas racionalistas. Como o filósofo alemão Friedrich Nietzsche bem analisou sobre a arte trágica, a cultura pós-socrática dividiu o espírito humano, valorizando em demasia o apolíneo – ser da forma, medida e inteligência – e desprezando o dionisíaco – ser da desmesura e da emoção, também parte de nosso espírito vital. O ser humano, sem uma dessas metades de seu espírito, se esvazia e decai, tornando-se incompleto. O mangolão, por sua vez, é o dionisíaco contemporâneo, essencialmente festivo. É por este fato que o mangolão parece sempre alegre, pois celebra todos os momentos da vida, amando incondicionalmente seu próprio destino. O mangolão tem de ter até mesmo uma grande carga de coragem, ao carregar o peso não só das felicidades de seu destino, como também das próprias adversidades. O mangolão, fruto de um berço opressor, ama o fato de celebrar a vida por completo tanto quanto a verdade da opressão, do limite moral e da disciplina provenientes do sistema. Face a face com uma realidade maior que ele mesmo, só resta ao mangolão amá-la em todos os seus sentidos. Nesse ponto que se dá a importância ética do mangolão. Ele se torna uma virtude dos fortes ao justamente ser um bom exemplo de como os indivíduos devem se comportar diante de uma realidade insatisfatória e decadente como a que se vê no mundo contemporâneo.
            O mangolão é uma concepção ética que se manifesta tanto na linguagem quanto no comportamento. É uma ética essencialmente crítica, que afronta o status quo, sendo uma resposta espiritual contra a cultura racionalista contemporânea. O mangolão, assim, é uma ética de combate, uma antítese à sociedade mecanicista, uma resposta que ergue a necessidade humana de liberdade espiritual. Daí o motivo no qual o tipo mangolão é tão criativo: através da criação e da própria arte é que ele levanta sua mais importante bandeira. O espírito alegre do mangolão é uma resistência espiritual, um libertar das rédeas da lógica capitalista pela necessidade de ascensão do próprio espírito dionisíaco, intrínseco ao homem. A linguagem mongoliana, que inclui seu comportamento, é permeada pela musicalidade e pela teatralidade, caracterizada por seu cunho humorístico e dramático, ao tentar interpretar a realidade pela ótica do espetáculo. Desse modo, o mangolão é intrinsecamente performático, necessitando de uma mise-en-scène para expressar seu pensamento. Pelo caráter artístico da ética mongoliana, ela torna-se uma linguagem de celebração e homenagem da vida e das paixões. O mangolão é uma ética, assim, essencialmente afirmativa da existência e de suas adversidades.
            Numa realidade cinza e niilista, proveniente da ótica fria da cultura pós-industrial, o mangolão surge como a emoção que fora desdenhada desde Sócrates e Platão, que buscavam a verdade além do próprio cerne do conhecimento: o próprio ser humano. A tragédia grega e a mitologia pré-socrática centralizaram a verdadeira origem do saber filosófico, que é antropológica. Assim, os mitos gregos abrigavam a sabedoria, por exaltar as emoções mais profundas do ser humano, desprezadas pela cultura e pensamento ocidentais herdados pela filosofia socrática. Apenas milênios depois, com Nietzsche, Freud e Dostoiévski, na filosofia moderna e contemporânea, que o conhecimento focou-se novamente ao seu centro, na realidade irracional do processo humano. Como esperado, a filosofia contemporânea teve como conseqüência uma crise da razão e do positivismo, que viam fielmente as respostas na própria ciência. Com os filósofos de cunho irracionalista, não mais havia uma verdade absoluta e metafísica, ou seja, destruiu-se a verdade que toda a história da filosofia buscou, desde Sócrates até Kant. Instaurou-se, desse modo, a verdade das emoções e paixões mais abismais, após constatar-se que a realidade humana é movida por desejos cegos e forças brutas que almejam incessantemente o poder e a vitória. Um dos primeiros filósofos a inserirem essa concepção irracionalista do mundo foi Schopenhauer, um dos últimos metafísicos. Nietzsche recuperou o pensamento de Schopenhauer, e esses dois pensadores influenciariam a tese psicanalítica de Freud, a medula da psicologia contemporânea. A filosofia contemporânea não mais buscou verdades-além, realidades inteligíveis, alma ou essência, mas deu-se importância à complexa rede de desejos que move a vontade humana. Não almejou-se mais verdade absoluta, mas quis-se buscar como tratar a vida com relação à essa realidade cega, mutável e caótica (vide existencialismo). É nessa filosofia irracionalista e contemporânea que o mangolão reside.