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domingo, 21 de setembro de 2025
A Lua não está nem aí pra gente
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021
Metal, raio, relâmpago e trovão: biografia de uma legião II
Renato Manfredini Jr. Nasceu a 27 de Março de 1960, no bairro Humaitá, capital fluminense. Filho de um bancário (Banco do Brasil) e de uma professora de inglês e dona de casa, primos de segundo grau e descendentes tanto de italianos da Sesto Cremonese (comuna, ao Norte da Bota), quanto de pernambucanos. O casal concebeu o rebento e, alguns anos mais tarde, a caçula, Carmen Teresa.
Júnior
fora uma criança como qualquer outra: pulava corda, empinava pipa. Já na alfabetização,
vislumbrava-se o gérmen do que viria a desabrochar em anos ulteriores: fizera
uma de suas primárias redações em caligrafia cursiva hábil e gramática cristalina.
Seu pai, estudioso e austero, influenciara o primogênito com seu tino educativo:
fez do filho um leitor voraz. Quando Renato contava por volta de oito anos de
idade, seu núcleo familiar se mudou para Nova Iorque. Lá, em meses, mostrou
fluência na língua inglesa (mais tarde em sua vida, receberia, no Brasil, o
príncipe Charles inglês, numa situação diplomática).
Cinco
anos depois, a família volta ao seu lócus originário, só que diretamente à
capital principiante: Brasília. Arquitetada sob a égide de Le Corbusier, a
cidade fora compartimentada com a meticulosidade de quem abrigaria
trabalhadores de cada estrato social, conforme cada camada da burocracia
brasileira. Logo, a família Manfredini se situou no território brasiliense
enquanto encabeçada por um funcionário público. Aos arredores, blocos
assoberbados de militares (sim, da mesma casta dos que à época regiam o País) e
professores universitários.
A
arbitrariedade do destino do jovem Manfredo lhe abençoou com uma doença óssea,
chamada epifisiólise. Durante o tratamento, teve-se um segundo azar: erro
médico, por colocação de um pino numa área indevida do tecido ósseo. Dores
lancinantes e, tecnicamente, paralisia. Renato Manfredini Jr. seria em breve
internado no próprio quarto, cuja decoração remontava uma idílica Londres, que,
ideal, imbuía-lhe os pensamentos – e os de todos que o visitassem – de sonhos
distantes.
Seria
a fase decisiva de sua vida como artista (no sentido mais concreto e célebre do
termo): leria o triplo ou quádruplo do que lia; ouviria o quíntuplo do que
ouvia, de Beatles ao que mais fosse; e, sorveria o sêxtuplo do que sorvia de
Melody Maker e o que mais calhasse de matéria sobre música. O interessante
(para nós, seres do novo milênio) é que os professores ginasiais do menino
confiavam a ele a resolução caseira das provas. Talvez, porque uma viagem de
cadeira de rodas até as bibliotecas municipais parecesse demasiadamente
desgastante ao coitado.
Renato
não passou na UnB, mas na Ceub. Recuperado da perna, atravessava o céu como uma
flecha detida por um arco há muito retesado. Em meio à savana, não só a do
Cerrado, como à da própria cultura daquele urbanismo salobro, nada melhor
calhava que o tal do punk (uma importação de guitarras distorcidas e acordes de
tosquice plena de contundência, diretamente da Grã-Bretanha). Faltava pubescência a
uma música popular refém do pastiche tropicalista e da Solange, a uma só vez.
Que fossem garotos com acne, gritando e palhetando suas Fenders; era, ao menos,
algum ruído com decibéis bastantes aos ouvidos morosos. As caixas de som
ecoavam, talvez, até o contíguo Pantanal. Os jovens iam à lanchonete e fruíam
algum evento, sem precisarem rumar para o Eixo Rio-SP. Paralelamente às
apresentações com o Aborto Elétrico, Renato era graduando em Comunicação Social
(Jornalismo), e pensava em seguir carreira diplomática. Chegou a ministrar
aulas de inglês, até ser demitido (extrapolou, na empáfia do tutor visionário).
Outrossim, participou de alguns programas de rádio, enquanto locutor.
A
música brasiliense ecoou até a Mata Atlântica. Lincoln Olivetti sofreu um
nocaute da nova produção fonográfica. Não havia mais lugar às horn sessions. Na medida do possível,
dentro dos horizontes protocolares da indústria, arranhava-se as tortuosas
guitarras elétricas nos estúdios cariocas da EMI. Nesse ínterim, a história de
Renato-agora-Russo se mistura com as circunstâncias. Mudado geograficamente,
graduou-se, mas se via de volta à sua cidade natal; não para um acalanto, mas
para o risco: lançar o primeiro disco.
Já se
ouvia guitarras pelo Sudeste desde 1982. A Legião entrou de fato na onda em
1985, fazendo o sucesso de 50 mil cópias imediatamente vendidas, com um álbum
homônimo. Embora a verve provincial pungisse, “Legião Urbana” tinha direito a
uma baladona (Por enquanto).
Renato
era culto o bastante para que soubesse explorar tais territórios desconhecidos.
Em contrapartida, à maneira assincrônica dos talentosos, cortou os pulsos, como
“aviso” de que não mais queria tocar o baixo. A incumbência do instrumento
ficou com o grande Renato Rocha (saído da empresa no terceiro disco; não sem
deixar sequelas*).
Cortar
os pulsos era ficha, se o caso é comparar tal prática isolada ao frequente e
abusivo uso de pó e álcool da década, a que Manfredo era afeito. Dispensava refeições
(e as substituía por iogurte), e com seriedade se engajava nas farras,
sobretudo as bioquímicas; tudo a que o jovem adulto precocemente próspero se dá
(vide craques do futebol que violam, e os que portam armas com numeração
raspada, e os que falsificam documentos de identidade...). Ia dos 65 aos 50 kg;
voltava. O pássaro novo, quando longe do ninho, não tem limite.
“Dois”
incluiu pandeirolas e violões. A Legião Urbana surpreendia com o fenótipo folk.
As letras quilométricas eram destras ao codificar os sentimentos ambíguos dos
pós-adolescentes de classe média. Renato parou de beber, ao encarar a
responsabilidade que se escancarava ao palco. Seu transe era demasiadamente
poderoso para que abusasse da plateia com suas flutuações internas. Mas, é
provável que fumasse unzinho, vez ou outra, retornando à ativa com radicalismo
no ano seguinte.
O show
do Mané Garrincha foi a prova mais conspícua de que o
delírio coletivo pode seguir caminhos próprios; inclusive, caminhos
destrutivos. Isso, porque um recém-lançado questionamento, “Que país é este?”,
é capaz de incutir, no inconsciente impessoal, um amálgama efervescente de
ressentimentos externos e internos: a situação sociopolíticocultural e a
subjetiva idiossincrática. A pulsão de morte, logo, venceu a pulsão de vida,
naquela noite. O bastante para que a banda mais feliz do Brasil insurgisse em
roupagem completamente diferente, mais de um ano depois.
“As
quatro estações” citava Deus e santos. Novas metáforas, novos recursos
imagéticos. Ar de amadurecimento etáriofisiológico. Aura oriental, sobretudo em
Feedback song..., para lembrar os 60s.
E a poética, cada vez mais, bem trabalhada. A esse momento, Renato se embebedou
e cheirou por um ano. Asilou-se no Marina Palace. Em breve, encontrar-se-ia em
San Francisco. Conheceu o amor de sua vida e o formou, aqui, longe demais da
capital homoerótica. Quis ser o preceptor de Scott: ensinou-lhe o beabá com
Jack Kerouac. Isso, porque Robert S. Hickmon fazia o tipo atlético, disléxico, white trash, diametralmente oposto
àquele de seu amigo: cerebral, intelectual e bem-nascido. O primeiro e único
amor da vida de Renato, provavelmente (exceto o ulterior e hermético
Cristiano); por isso, a perdição, quando do rompimento. Scott era soropositivo:
fora acometido pela peste emergente. Mal Renato se assumia para si mesmo
(depois de se assumir para a imprensa), contraía a morbidade fortemente
associada à sua orientação.
A
situação se recrudescia face ao seu contexto: era a época da assunção sérica de
Cazuza. Seu rosto plúmbico de AZT, escaveirado, e suas pernas pneumáticas,
neurotizariam a população relativamente à “doença gay”. Ergueu-se, portanto, mais
uma coluna no metafísico pilotis de preconceito em relação à homossexualidade.
O
Manfredo descobriu a própria positividade meses após a sucumbência de Agenor.
Declinou do abuso de estupefacientes, ao ponto de se contentar tão somente com
canabinoides e benzodiazepínicos. Escreveu as letras do álbum “V” sóbrio.
Estudava Idade Média e Cruzadas. Desenrolava-se a era em que Collor se mostrava
como o primeiro – ou o mais emblemático – Nero da República incipiente: o
Império dos Abacates ruía, e o anjo exterminador nascia, no berço da Casa da
Dinda.
Chegada
a turnê, caía a ficha de Renato; o que o fazia beber uísque em copões de suco
de laranja natural, ao longo das madrugadas. Quebrava um e outro móvel dalgum
hotel cinco estrelas qualquer, em Aracaju. Turnê cancelada. Dessa vez, Júnior
quis nocautear um fígado já baleado por uma comórbida hepatite. Vivia à toda ao
modo junky de ser, até que se decidiu
pelos Doze Passos (programa de reabilitação do alcoolismo e da toxicomania).
Voluntariamente
limpo, desenvolve com o grupo “O descobrimento do Brasil”: uma descoberta menos
tropicaloide que renascentista. O role-playing,
o bandolim e as flores, presentes na capa do álbum, não remontavam nenhum “Panis
et circensis” (diferentemente dos músicos de apoio*), mas um painel árcade,
bucólico, escapista: era precisamente este
o achamento. Muito bem estabelecida na burocracia da produção e divulgaão de
discos, a Legião podia brincar mais do que nunca com as pieguices e clichês. Só por hoje e Vamos fazer um filme formam o cume desse processo. A substância
propriamente literária seguia a marcação progressiva dos álbuns anteriores:
criatividade e polimento ainda maiores.
A
terapia ocupacional de Renato, acompanhada do ovacionado Prozac, foram dois
álbuns: em inglês e em italiano, conforme respectividade cronológica. Num, quis
brincar com a música norte-americana pré-Elvis; noutro, mais seriamente com o
cafona do popularesco itálico. Vê-se que a breguice é uma tônica em Renato, o
qual pode ser que se visse entediado face à incompreensão recorrente, tanto por
sua superioridade verbal, quanto por seu direcionamento romântico. Já que era o
operário número 1 da major, podia,
virtualmente, fazer o que quisesse (contanto que não excedesse os limites
contratuais). Eventualmente, com os asseclas, pixaria os carpetes da sede
carioca, para fins de protesto. A vista grossa dos grande burocratas se
fundaria na tergiversação de que se tratava de um “ato de rebeldia”, quando se
pensou o que se faria com os trintões dengosos.
O
adulto Manfredo sofre outra vez: separa-se do folclórico Cristiano, tem uma
recaída, e abandona a produção do “Equilíbrio distante” para voltar um mês depois.
Ao cabo, com a extraordinária popularidade que o CD galgou, Renato tramitou a
adoção de Laura Pausini pelo italômano Fausto Silva. Com o álbum em inglês, também
pare Zélia Duncan. Vira, logo, uma espécie de deus, também entre os intérpretes
brasileiros (fora o posto de voz e, sobretudo, de letras, no cancioneiro
popular).
Inicia-se
a produção de um novo disco com a Legião. Virtualmente, ele debandaria ao pop.
Ideias de letras. Entretanto, entra-se rasteira a fase sintomática: a Aids
propriamente dita se insurge precisamente em meio aos planejamentos laborais.
Deixa de ser escabiose e tosse – inconvenientes de somenos importância – para se
tornar bronquite, esofagite, gastrite, traqueíte e, por fim, pneumonia. O teor
do álbum se transmuta, com as letras e o canto progressivamente mais macilentas
e achatadas, muito mais tétrico do que aquele que inicialmente se idealizou.
A lacuna
espiritual entre a feitura dos arranjos, apresentada numa gravação do início de
96, e o estranho produto vocal e discursivo, enfileirado aos montes nas Lojas
Americanas, em Setembro do mesmo ano, traduzem o nexo possível do elo
inspiração-trivialidade. Ao menos, no processo composicional de um estilo
lírico, visto na Legião. O declínio da voz de Renato traía a presença de um som
mais soberbo, denso: é possível perceber os resultados de uma alforria, dadas a
direção e a produção artísticas atribuídas ao próprio Dado Villa-Lobos, ao
invés de a um operário nato da multinacional. O artista definhava, em meio a
tempos sobranceiros (e de uma tecnologia cada vez mais arrojada*). Aliás,
dizia-se no meio médico que o humor de pacientes aidéticos mantinha íntima relação
com sua sobrevida: quando o acometido preservava a sua capacidade de se
satisfazer, chegava-se a dez anos, três a mais que a média da época. Contudo,
Renato tinha pressa, e seu muscular profissionalismo fê-lo preferir o
imperfeito ao absolutamente não feito. No fim, o resultado basicamente sonoro é
mais criativo e mais potente, malgrado a lamentável performance vocálica em
várias faixas.
Estaria
o cantor e letrista satisfeito com o resultado?
O adulto
Manfredo não mais teria estamina para sair da casa em Ipanema até o estúdio na
Barra, tão frequentemente. Aparecia uma hora ou outra, amparado por uma
bengala. Brigava muito pelo telefone: estava especialmente hiperativo e
imperativo, a um só tempo. Os músicos se ressentiam. Como quando cortara os
pulsos, tentava subliminarmente comunicar decisões categóricas por meios
escusos: não sabia agir doutra forma. Assumiu o que lhe afligia com o empurrão
de sua impulsividade de dependente crônico, a um de seus músicos: “to doente,
porra” foi o que ouviu o tecladista Carlos Trilha, que também proferiu ao líder
suas mágoas quanto à imprevisibilidade do Homem no trabalho de estúdio.
Terminados
os trabalhos, Renato se decide por permanecer esquivo à vida exterior. Tocava
um Schubert aqui, ao piano; lia um Bom crioulo (Adolfo Caminha) ali. Até que
seu corpo não mais conseguisse manter ortostase, devido à caquexia e à anorexia
que a doença e o agressivo tratamento do obsoleto coquetel proporcionavam ao
corpo judiado. Àquele tempo, Aids significava estigma, traduzido em olhos
profundos, pescoços famélicos, zigomas conspícuos, flancos translucentes,
fácies lívida. Exatamente por isso, juntamente a uma neuro-Aids acentuada,
fazia-se muito mais fácil simplesmente não reagir à fatalidade dos arbítrios
numênicos. Mostrar a cara numa clínica São Vicente e virar um “agonizante público”
condicionaria, no cômputo final de tudo, marcar a obra de seus álbuns com
demãos das matizes cinza chumbo dos colaterais medicamentosos; sepultando, em
vida, a aura eminente de seu espírito criador. Sua discrição lhe salvou de ser
visto como menor que o jovem e ultragenial Noel Rosa.
quarta-feira, 28 de outubro de 2020
Lobão, Rogério Skylab, Júpiter Maçã e Renato Russo
Lobão.
Rogério Skylab. Júpiter Maçã. Renato Russo. Quatro nomes, os quais podem se
mostrar díspares, tanto entre si, quanto dentro de seus próprios microcosmos. A
ordem em que os dispus nesta listagem não diz respeito exatamente à gradação de
contraditoriedade (ou, ao potencial de contraditoriedade) de cada um; conquanto
Lobão talvez seja o mais emblemático, nessa tétrade, na qualidade sobre a qual
se mencionou. João Luiz Woerdenbag Filho, em sua persona artística, capitalizou
o Paradoxo, mesmo num trabalho de autoanálise: um rockstar, por excelência, um enfant-terrible dos mais conspícuos da
geração 80, nutrido da mais barroca das variações do rock – o progressivo –,
fora enxotado do seu cenário principal precisamente por sua cada vez mais obsessiva
afecção pela tradição do samba: incluiu Elza Soares em seu álbum O rock errou de 1986 (nenhum outro
título de álbum melhor descreve seu fenômeno); e, ingressou em pleno Rock in
Rio, conjuminado a uma escola de samba. Matou-se, então, o “roqueiro” Lobão.
Posteriormente, educou-se de forma autodidática no violão clássico e reestreou,
já nos anos 90, com um álbum imbuído na tradição sambística: Nostalgia da modernidade. Mais tarde, ao
auge de uma iconoclastia póstuma (primórdios dos anos 2000, quando os cabeças
da geração 80 “morreram de overdose”), lançou o brilhante A vida é doce: moderníssimo – trip hop, eletrônico – e, ao mesmo
tempo, com fumos de bossanova. Comungou-o com o Brasil em tiragem independente,
atingindo altas vendagens, aquém do tacão da indústria fonográfica. Pioneiro.
Posso
dizer que Rogério Skylab é o primogênito desse parricídio. Sua série dos Skylabs foi iniciada pontualmente quando
as grandes indústrias fonográficas sucumbiram. Como se isso não bastasse,
Rogério quis ainda dissecar o cadáver do pai: fruiu uma escatologia que superou
mesmo a proposta de um esdrúxulo Cabeça
dinossauro. Paradoxalmente (ou não), pungia fenótipos da tradição; afinal,
o pai assassinado não deixa de ser... pai. Skylab é o maior exemplar da
derrocada definitiva do rock mainstream.
Quanto
a Júpiter, há nuanças que configuram uma maior complexidade em sua trajetória.
Com os Cascavelletes, foi um filho bastardo da geração 80. Isso, porque o rock
portoalegrense, rebento também oitentista, mas que só concomitava com o
mainstream dos 80 em nível cronológico, em nada coadunava com a verve new wave-like, inglesa, de seus contemporâneos do
Eixo Rio-São Paulo. Cascavelletes era Stones com sacanagem: era outra coisa;
farinha do mesmo saco ipanêmico, não eram. Despontaram lá e cá nos clássicos
programas globais de auditório (vide Angélica). Mas a vivência do “oitentismo”
foi substrato de popularidade e atenção ao que viria uma década depois.
Primeiramente, A sétima efervescência:
early Pink Floyd, psicodelia,
remontando um Mutantes 60-70s. Outra proposta, de inovação relevantíssima à
aura de luto que predominava com a desintegração proporcionada por Collor, axé,
sertanejos e AIDS. Em seguida vem Plastic
soda, um experimentalismo aliado ao jazz-bossanova. Hisscivilization é o cume do ludicismo sonoro, com tudo misturado.
Mais tarde, Uma tarde na fruteira
cristaliza Júpiter como ícone cult dos
2000 pra frente.
Vale
lembrar a trágica entrevista no Matador
de passarinho (programa encabeçado pelo próprio Rogério Skylab; uma
celebração da decadência), que retratou com muita destreza e sensibilidade a extinção
da espécie rockstar-decadente-drogado-clube-dos-27. Entupido de downers,
Júpiter se levou, num groove nonsense, à derradeira estereotipificação do
clássico “tomou LSD e nunca mais voltou”. Flávio Basso morreu cerca de um ano
depois do evento.
Por
que, agora, falar de Renato Russo, se o que até agora se dissertou foi sobre outsiders pur sang da música brasileira? Porque... paradoxalmente, a Legião
foi a banda da sua geração que menos flertou com a tradição da MPB. E,
sobretudo, foi a que capitalizou o mainstream de sua época. Renato transcendeu
o métier, tangendo as raias do beletrismo: inspirado nos Pessoas, Drummond,
Shakespeare (lendo-o, inclusive, no original), não era mais apenas um letrista.
Virou arauto. Esteticamente, no entanto, a Legião Urbana era uma manufatura
sonora um tanto quanto amadorística, dada a deficiência técnica e a pobreza de
formação musical propriamente teórica. Não fosse a tergiversação na fonte
punk-DIY (do it yourself), superariam
o panteão setentista: Tim Maia, Jorge Ben, Novos Baianos etc. Seriam o maior
grupo musical da história do país. Não teria sido pela assertiva negação ao
chicoecaetanismo seu triunfo? Certo é que, entre os quatro nomes aqui
analisados, Renato e Legião não foram crescidos da “Tradição”. Provinham doutra
genética, estrangeira; “colonizados”, par
excellence. Aos trancos e barrancos, Renato e Legião mantiveram até o fim o
seu centro de gravidade, sem nenhum pendor à “síndrome de dignidade intelectual”
conceituada por Lobão. Não teria sido este o verdadeiro parricídio?
Que
fiquemos neste ar de vaga nostalgia, como quem vasculha antigos retratos de
velhos álbuns de fotografia, enquanto tudo o mais cada vez mais se pulveriza.
quinta-feira, 10 de novembro de 2016
Herói entre existências
domingo, 2 de outubro de 2016
(Mais) um ensaio crítico sobre a filosofia de Friedrich Nietzsche
A vontade de poder consistiria numa substância do mundo, responsável por propelir o movimento constante do devir, do próprio vir-a-ser heraclitiano. O mundo, assim, seria uma batalha incessante e cega de forças entre si, sem nenhum objetivo. Tal vontade de poder seria o fundamento do mundo, sendo este uma matéria finita. Consoante o raciocínio de Nietzsche, visto que o tempo é essencialmente infinito, uma matéria limitada num tempo ilimitado seria condenada a repetir-se permanentemente. Portanto, conforme esta lógica, o mundo se repete infinitamente, bem como o homem, portanto, e todas as outras formas sob as quais a vontade de poder já se manifestou. A esse processo, Nietzsche chamou de eterno retorno do mesmo, pensamento também fulcral no ideário do filósofo. Nesta conclusão, o pensador alemão tangeu tanto a metafísica da qual se abstinha desde o cabo de sua primeira fase quanto o cientificismo de seu tempo, que tinha o darwinismo como seu principal expoente. Entrementes, Nietzsche não se contentou com uma ideia puramente científica e ao mesmo tempo metafísica, mas a expandiu para o âmbito da psicologia. Utilizando uma perspectiva pragmática, que se questiona a respeito das implicações práticas das verdades, Nietzsche conjeturou acerca das consequências que o eterno retorno do mesmo pode introjetar no mundo humano. Assim como Kant utilizou a ideia de um ente divino como um regulador moral da vida humana, Nietzsche usufruiu sua doutrina do eterno retorno como reguladora da existência prática do homem. Desse modo, no caso de Kant, o homem deveria comportar-se como se existisse um deus, ou imperativo categórico, mensurando suas ações; para Nietzsche, forte seria o ser humano que aceitasse o eterno retorno do mesmo como uma verdade prática, ou seja, como se a existência se repetisse infinitamente e idêntica ao que foi. Portanto, o homem forte afirmaria sua vida de forma igual e infinda, em todas as suas alegrias e vicissitudes. Tal ideia culmina num dos vértices do triunvirato conceitual nietzschiano: o além-do-homem. Este, assim, baseia-se na ideia de um homem em constante autodesenvolvimento, externando a sua vontade de potência tanto no domínio de outros quanto no domínio de suas próprias forças internas, superando a si próprio e a toda espécie humana. O além-do-homem provavelmente é, em Nietzsche, o aperfeiçoamento da ideia de gênio e santo, os quais justificariam a existência de uma cultura, pensamento este abordado na fase primária do autor. A existência de uma cultura, esta compreendida como área de vivibilidade de uma sociedade, fundamentaria-se no pico de encantamento num único indivíduo, o que significa que a sociedade deveria mobilizar-se ao cultivo de uma aristocracia, a qual teria poder o suficiente para uma grande magnitude artística; portanto, criando obras de arte nas quais a sociedade pudesse justificar a própria vida. Aí é que o pensamento essencialmente livre e expansivo de Nietzsche contempla concepções de cunho político e social, idealizando uma cultura baseada num sistema bicameral: um lado vive a expansão artística e criativa do gênio, e outro lado se volta à frieza dos assuntos políticos e morais. Porém, da mesma matriz de seu pensamento aristocrático surgem polêmicas a respeito da inclinação do filósofo a ideias escravistas, contrastando profundamente com os ideais democráticos e socialistas contemporâneos a ele, no século XIX. Para Nietzsche, a fim de que se possa justificar a existência de uma sociedade através da cultura, há de se garantir uma classe que cria e outra que trabalha. Consoante a configuração do mundo greco-romano clássico, o trabalho escravo seria vital para a manutenção de uma cultura, já que se pensava as classes criativas -- portanto superiores -- dignas do ócio. Tal contexto humano de desigualdade que, para Nietzsche, é uma prova da violência inerente à natureza, culminou na ruína do mundo antigo, o que influiu num dos pilares da filosofia nietzschiana: a crítica da moral. Já que as classes inferiores da configuração das sociedades clássicas eram encarregadas do peso da manutenção de toda uma cultura, houve uma rebelião por parte deste mesmo estrato social escravo. Tal revolta generalizada ocorreu principalmente no campo espiritual, refinada na criação de uma moral, a qual Nietzsche chamará de moral do escravo. Desde tempos pré-históricos, conforme a análise do pensador, a espécie humana dividiu-se entre nobres e escravos, sendo os primeiros dominadores e, os segundos, dominados. Assim, toda sociedade e toda cultura configuraram-se naturalmente da mesma forma. Os escravos, dominados, sempre sofreram o fardo da submissão, tendo sua força reduzida pela expansão da vontade de poder da classe dominante. Criou-se, pois, um ressentimento nestes dominados, os quais passaram a considerar o seu enfado como uma grande injustiça, o que acumulou forças para a criação do que Nietzsche denominou transvaloração dos valores. Este conceito se fundamenta na ideia de que, neste contexto, os valores nobres foram invertidos pelos valores escravos. Desse modo, os valores de dominância, implacabilidade, audácia e ócio da aristocracia foram destituídos, sendo substituídos pelo estabelecimento das características especificamente escravas, como a obediência, a humildade, a compaixão e a aplicação. Tais características, outrora sintomas da fraqueza, tornaram-se virtudes, construindo-se um ideário moral em busca do triunfo dos malogrados sobre os nobres. Porquanto para Nietzsche esta distinção de classes é uma nuance natural da crueldade do devir, a transvaloração escrava dos valores nobres estabeleceu-se não como um conflito de forças positivo, mas como a ascensão de uma vontade de poder negativa: ao rebelarem-se contra a estrutura desigual da civilização, os escravos instituíram uma moral que negava a vida. Enquanto antes a aristocracia dominava com sua vontade afirmativa de vida terrena, a moral escrava criou um único deus, conceitos de "bem" e "mal" -- substantivando o que eram outrora meros adjetivos, "bom" e "mau" -- e um universo imaginário, a fim de que o sofrimento terreno do escravo fosse suprimido num "Além". A escravidão transvaloradora de valores, pois, foi a acumulação milenar de forças oprimidas que insurgiu de modo tirânico, transformando em ruína a antiguidade clássica e institucionalizando uma religião, que concentrava todo o ideário de rebeldia escrava: o cristianismo. A doutrina cristã, desse modo, expandiu-se mundialmente, sendo uma grande vitória dos valores escravos sobre os nobres. Sabendo-se que, para Nietzsche, o mundo da experiência, ou o chamado "mundo aparente", é o único dos mundos possíveis, o triunfo do cristianismo tornou-se peculiar ao alcançar poder a partir da negação do próprio "mundo aparente", em prol de universos-além, isto é, mentiras. Logo, apesar de sua crítica cáustica à moral cristã, Nietzsche vê-se ainda mais crente numa transvaloração dos valores, só que utilizando seu além-do-homem como porta-voz, o qual promoveria justamente a recuperação dos valores aristocráticos pré-cristãos. É inegável que o triunfo do cristianismo foi efeito de uma grande explosão de forças criativas, sendo tal energia artística algo que o filósofo alemão primou ao longo da história de seu pensamento. Entrementes, o pensador, que chegou ao ponto de conjeturar soluções genocidas para o extermínio das populações herdeiras dos valores escravos, critica o ascetismo e a periculosidade do sacerdote, embora ele mesmo seja, em sua filosofia, um asceta. Para além da postura afirmativa da vida que corrobora em seu pensar, Nietzsche, pois, é um asceta que se abrigou em verdades eternas e metafísicas, tal qual o cristão, que se fundamenta em mundos imaginários, aos quais o pensador alemão tanto se opôs. A filosofia nietzschiana, aí, enverga-se contra si mesma; o que não faz, porém, desaparecer sua importância na história do pensamento humano, ao influenciar as diversas vertentes do conhecimento que proporcionaram novas interpretações do homem.
