Renato Manfredini Jr. Nasceu a 27 de Março de 1960, no bairro Humaitá, capital fluminense. Filho de um bancário (Banco do Brasil) e de uma professora de inglês e dona de casa, primos de segundo grau e descendentes tanto de italianos da Sesto Cremonese (comuna, ao Norte da Bota), quanto de pernambucanos. O casal concebeu o rebento e, alguns anos mais tarde, a caçula, Carmen Teresa.
Júnior
fora uma criança como qualquer outra: pulava corda, empinava pipa. Já na alfabetização,
vislumbrava-se o gérmen do que viria a desabrochar em anos ulteriores: fizera
uma de suas primárias redações em caligrafia cursiva hábil e gramática cristalina.
Seu pai, estudioso e austero, influenciara o primogênito com seu tino educativo:
fez do filho um leitor voraz. Quando Renato contava por volta de oito anos de
idade, seu núcleo familiar se mudou para Nova Iorque. Lá, em meses, mostrou
fluência na língua inglesa (mais tarde em sua vida, receberia, no Brasil, o
príncipe Charles inglês, numa situação diplomática).
Cinco
anos depois, a família volta ao seu lócus originário, só que diretamente à
capital principiante: Brasília. Arquitetada sob a égide de Le Corbusier, a
cidade fora compartimentada com a meticulosidade de quem abrigaria
trabalhadores de cada estrato social, conforme cada camada da burocracia
brasileira. Logo, a família Manfredini se situou no território brasiliense
enquanto encabeçada por um funcionário público. Aos arredores, blocos
assoberbados de militares (sim, da mesma casta dos que à época regiam o País) e
professores universitários.
A
arbitrariedade do destino do jovem Manfredo lhe abençoou com uma doença óssea,
chamada epifisiólise. Durante o tratamento, teve-se um segundo azar: erro
médico, por colocação de um pino numa área indevida do tecido ósseo. Dores
lancinantes e, tecnicamente, paralisia. Renato Manfredini Jr. seria em breve
internado no próprio quarto, cuja decoração remontava uma idílica Londres, que,
ideal, imbuía-lhe os pensamentos – e os de todos que o visitassem – de sonhos
distantes.
Seria
a fase decisiva de sua vida como artista (no sentido mais concreto e célebre do
termo): leria o triplo ou quádruplo do que lia; ouviria o quíntuplo do que
ouvia, de Beatles ao que mais fosse; e, sorveria o sêxtuplo do que sorvia de
Melody Maker e o que mais calhasse de matéria sobre música. O interessante
(para nós, seres do novo milênio) é que os professores ginasiais do menino
confiavam a ele a resolução caseira das provas. Talvez, porque uma viagem de
cadeira de rodas até as bibliotecas municipais parecesse demasiadamente
desgastante ao coitado.
Renato
não passou na UnB, mas na Ceub. Recuperado da perna, atravessava o céu como uma
flecha detida por um arco há muito retesado. Em meio à savana, não só a do
Cerrado, como à da própria cultura daquele urbanismo salobro, nada melhor
calhava que o tal do punk (uma importação de guitarras distorcidas e acordes de
tosquice plena de contundência, diretamente da Grã-Bretanha). Faltava pubescência a
uma música popular refém do pastiche tropicalista e da Solange, a uma só vez.
Que fossem garotos com acne, gritando e palhetando suas Fenders; era, ao menos,
algum ruído com decibéis bastantes aos ouvidos morosos. As caixas de som
ecoavam, talvez, até o contíguo Pantanal. Os jovens iam à lanchonete e fruíam
algum evento, sem precisarem rumar para o Eixo Rio-SP. Paralelamente às
apresentações com o Aborto Elétrico, Renato era graduando em Comunicação Social
(Jornalismo), e pensava em seguir carreira diplomática. Chegou a ministrar
aulas de inglês, até ser demitido (extrapolou, na empáfia do tutor visionário).
Outrossim, participou de alguns programas de rádio, enquanto locutor.
A
música brasiliense ecoou até a Mata Atlântica. Lincoln Olivetti sofreu um
nocaute da nova produção fonográfica. Não havia mais lugar às horn sessions. Na medida do possível,
dentro dos horizontes protocolares da indústria, arranhava-se as tortuosas
guitarras elétricas nos estúdios cariocas da EMI. Nesse ínterim, a história de
Renato-agora-Russo se mistura com as circunstâncias. Mudado geograficamente,
graduou-se, mas se via de volta à sua cidade natal; não para um acalanto, mas
para o risco: lançar o primeiro disco.
Já se
ouvia guitarras pelo Sudeste desde 1982. A Legião entrou de fato na onda em
1985, fazendo o sucesso de 50 mil cópias imediatamente vendidas, com um álbum
homônimo. Embora a verve provincial pungisse, “Legião Urbana” tinha direito a
uma baladona (Por enquanto).
Renato
era culto o bastante para que soubesse explorar tais territórios desconhecidos.
Em contrapartida, à maneira assincrônica dos talentosos, cortou os pulsos, como
“aviso” de que não mais queria tocar o baixo. A incumbência do instrumento
ficou com o grande Renato Rocha (saído da empresa no terceiro disco; não sem
deixar sequelas*).
Cortar
os pulsos era ficha, se o caso é comparar tal prática isolada ao frequente e
abusivo uso de pó e álcool da década, a que Manfredo era afeito. Dispensava refeições
(e as substituía por iogurte), e com seriedade se engajava nas farras,
sobretudo as bioquímicas; tudo a que o jovem adulto precocemente próspero se dá
(vide craques do futebol que violam, e os que portam armas com numeração
raspada, e os que falsificam documentos de identidade...). Ia dos 65 aos 50 kg;
voltava. O pássaro novo, quando longe do ninho, não tem limite.
“Dois”
incluiu pandeirolas e violões. A Legião Urbana surpreendia com o fenótipo folk.
As letras quilométricas eram destras ao codificar os sentimentos ambíguos dos
pós-adolescentes de classe média. Renato parou de beber, ao encarar a
responsabilidade que se escancarava ao palco. Seu transe era demasiadamente
poderoso para que abusasse da plateia com suas flutuações internas. Mas, é
provável que fumasse unzinho, vez ou outra, retornando à ativa com radicalismo
no ano seguinte.
O show
do Mané Garrincha foi a prova mais conspícua de que o
delírio coletivo pode seguir caminhos próprios; inclusive, caminhos
destrutivos. Isso, porque um recém-lançado questionamento, “Que país é este?”,
é capaz de incutir, no inconsciente impessoal, um amálgama efervescente de
ressentimentos externos e internos: a situação sociopolíticocultural e a
subjetiva idiossincrática. A pulsão de morte, logo, venceu a pulsão de vida,
naquela noite. O bastante para que a banda mais feliz do Brasil insurgisse em
roupagem completamente diferente, mais de um ano depois.
“As
quatro estações” citava Deus e santos. Novas metáforas, novos recursos
imagéticos. Ar de amadurecimento etáriofisiológico. Aura oriental, sobretudo em
Feedback song..., para lembrar os 60s.
E a poética, cada vez mais, bem trabalhada. A esse momento, Renato se embebedou
e cheirou por um ano. Asilou-se no Marina Palace. Em breve, encontrar-se-ia em
San Francisco. Conheceu o amor de sua vida e o formou, aqui, longe demais da
capital homoerótica. Quis ser o preceptor de Scott: ensinou-lhe o beabá com
Jack Kerouac. Isso, porque Robert S. Hickmon fazia o tipo atlético, disléxico, white trash, diametralmente oposto
àquele de seu amigo: cerebral, intelectual e bem-nascido. O primeiro e único
amor da vida de Renato, provavelmente (exceto o ulterior e hermético
Cristiano); por isso, a perdição, quando do rompimento. Scott era soropositivo:
fora acometido pela peste emergente. Mal Renato se assumia para si mesmo
(depois de se assumir para a imprensa), contraía a morbidade fortemente
associada à sua orientação.
A
situação se recrudescia face ao seu contexto: era a época da assunção sérica de
Cazuza. Seu rosto plúmbico de AZT, escaveirado, e suas pernas pneumáticas,
neurotizariam a população relativamente à “doença gay”. Ergueu-se, portanto, mais
uma coluna no metafísico pilotis de preconceito em relação à homossexualidade.
O
Manfredo descobriu a própria positividade meses após a sucumbência de Agenor.
Declinou do abuso de estupefacientes, ao ponto de se contentar tão somente com
canabinoides e benzodiazepínicos. Escreveu as letras do álbum “V” sóbrio.
Estudava Idade Média e Cruzadas. Desenrolava-se a era em que Collor se mostrava
como o primeiro – ou o mais emblemático – Nero da República incipiente: o
Império dos Abacates ruía, e o anjo exterminador nascia, no berço da Casa da
Dinda.
Chegada
a turnê, caía a ficha de Renato; o que o fazia beber uísque em copões de suco
de laranja natural, ao longo das madrugadas. Quebrava um e outro móvel dalgum
hotel cinco estrelas qualquer, em Aracaju. Turnê cancelada. Dessa vez, Júnior
quis nocautear um fígado já baleado por uma comórbida hepatite. Vivia à toda ao
modo junky de ser, até que se decidiu
pelos Doze Passos (programa de reabilitação do alcoolismo e da toxicomania).
Voluntariamente
limpo, desenvolve com o grupo “O descobrimento do Brasil”: uma descoberta menos
tropicaloide que renascentista. O role-playing,
o bandolim e as flores, presentes na capa do álbum, não remontavam nenhum “Panis
et circensis” (diferentemente dos músicos de apoio*), mas um painel árcade,
bucólico, escapista: era precisamente este
o achamento. Muito bem estabelecida na burocracia da produção e divulgaão de
discos, a Legião podia brincar mais do que nunca com as pieguices e clichês. Só por hoje e Vamos fazer um filme formam o cume desse processo. A substância
propriamente literária seguia a marcação progressiva dos álbuns anteriores:
criatividade e polimento ainda maiores.
A
terapia ocupacional de Renato, acompanhada do ovacionado Prozac, foram dois
álbuns: em inglês e em italiano, conforme respectividade cronológica. Num, quis
brincar com a música norte-americana pré-Elvis; noutro, mais seriamente com o
cafona do popularesco itálico. Vê-se que a breguice é uma tônica em Renato, o
qual pode ser que se visse entediado face à incompreensão recorrente, tanto por
sua superioridade verbal, quanto por seu direcionamento romântico. Já que era o
operário número 1 da major, podia,
virtualmente, fazer o que quisesse (contanto que não excedesse os limites
contratuais). Eventualmente, com os asseclas, pixaria os carpetes da sede
carioca, para fins de protesto. A vista grossa dos grande burocratas se
fundaria na tergiversação de que se tratava de um “ato de rebeldia”, quando se
pensou o que se faria com os trintões dengosos.
O
adulto Manfredo sofre outra vez: separa-se do folclórico Cristiano, tem uma
recaída, e abandona a produção do “Equilíbrio distante” para voltar um mês depois.
Ao cabo, com a extraordinária popularidade que o CD galgou, Renato tramitou a
adoção de Laura Pausini pelo italômano Fausto Silva. Com o álbum em inglês, também
pare Zélia Duncan. Vira, logo, uma espécie de deus, também entre os intérpretes
brasileiros (fora o posto de voz e, sobretudo, de letras, no cancioneiro
popular).
Inicia-se
a produção de um novo disco com a Legião. Virtualmente, ele debandaria ao pop.
Ideias de letras. Entretanto, entra-se rasteira a fase sintomática: a Aids
propriamente dita se insurge precisamente em meio aos planejamentos laborais.
Deixa de ser escabiose e tosse – inconvenientes de somenos importância – para se
tornar bronquite, esofagite, gastrite, traqueíte e, por fim, pneumonia. O teor
do álbum se transmuta, com as letras e o canto progressivamente mais macilentas
e achatadas, muito mais tétrico do que aquele que inicialmente se idealizou.
A lacuna
espiritual entre a feitura dos arranjos, apresentada numa gravação do início de
96, e o estranho produto vocal e discursivo, enfileirado aos montes nas Lojas
Americanas, em Setembro do mesmo ano, traduzem o nexo possível do elo
inspiração-trivialidade. Ao menos, no processo composicional de um estilo
lírico, visto na Legião. O declínio da voz de Renato traía a presença de um som
mais soberbo, denso: é possível perceber os resultados de uma alforria, dadas a
direção e a produção artísticas atribuídas ao próprio Dado Villa-Lobos, ao
invés de a um operário nato da multinacional. O artista definhava, em meio a
tempos sobranceiros (e de uma tecnologia cada vez mais arrojada*). Aliás,
dizia-se no meio médico que o humor de pacientes aidéticos mantinha íntima relação
com sua sobrevida: quando o acometido preservava a sua capacidade de se
satisfazer, chegava-se a dez anos, três a mais que a média da época. Contudo,
Renato tinha pressa, e seu muscular profissionalismo fê-lo preferir o
imperfeito ao absolutamente não feito. No fim, o resultado basicamente sonoro é
mais criativo e mais potente, malgrado a lamentável performance vocálica em
várias faixas.
Estaria
o cantor e letrista satisfeito com o resultado?
O adulto
Manfredo não mais teria estamina para sair da casa em Ipanema até o estúdio na
Barra, tão frequentemente. Aparecia uma hora ou outra, amparado por uma
bengala. Brigava muito pelo telefone: estava especialmente hiperativo e
imperativo, a um só tempo. Os músicos se ressentiam. Como quando cortara os
pulsos, tentava subliminarmente comunicar decisões categóricas por meios
escusos: não sabia agir doutra forma. Assumiu o que lhe afligia com o empurrão
de sua impulsividade de dependente crônico, a um de seus músicos: “to doente,
porra” foi o que ouviu o tecladista Carlos Trilha, que também proferiu ao líder
suas mágoas quanto à imprevisibilidade do Homem no trabalho de estúdio.
Terminados
os trabalhos, Renato se decide por permanecer esquivo à vida exterior. Tocava
um Schubert aqui, ao piano; lia um Bom crioulo (Adolfo Caminha) ali. Até que
seu corpo não mais conseguisse manter ortostase, devido à caquexia e à anorexia
que a doença e o agressivo tratamento do obsoleto coquetel proporcionavam ao
corpo judiado. Àquele tempo, Aids significava estigma, traduzido em olhos
profundos, pescoços famélicos, zigomas conspícuos, flancos translucentes,
fácies lívida. Exatamente por isso, juntamente a uma neuro-Aids acentuada,
fazia-se muito mais fácil simplesmente não reagir à fatalidade dos arbítrios
numênicos. Mostrar a cara numa clínica São Vicente e virar um “agonizante público”
condicionaria, no cômputo final de tudo, marcar a obra de seus álbuns com
demãos das matizes cinza chumbo dos colaterais medicamentosos; sepultando, em
vida, a aura eminente de seu espírito criador. Sua discrição lhe salvou de ser
visto como menor que o jovem e ultragenial Noel Rosa.
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