sábado, 27 de setembro de 2025

CARQUEASSE-A CÃO-COELHO FINISSECULAR ESTALAR-SE-IA

Bisavó. Dentes podres e tortos protusos. O que lhe restava do parco córtice de singelo neurocrânio (velha moça) ainda a preservava piadista e propensa a desatar em risos. Quando dormia, parecia, com o queixo enfiado no busto, animal de estimação que servisse de aconchego liso às mãos de minha crespa mãe.

 Sono que virou hábito, desde quando seu marido sucumbiu, enfartado, nos idos de 1980. Agora já era 2017; e quando Bisavó por vezes despertava de sua fisiológica narcolepsia de octogenária, fazia-o iluminada, olhando pros Céus e balbuciando onírica palavras de Redenção. Nesses casos, a filha viúva e magra pensava ter de acudi-la, chamar o vizinho... Mas tal espécie de onirismo, que cada vez mais imbuía, possuía, roubava a vigília de Bisavó, cessava, e a fazia semi-acordada em sua orientação hipnagógica, consciente e senil.

Tinha prótese bilateral nas pernas. Foi num dia de chuva que se perdeu, ou quis se perder, em plena Av. Protásio Alves. Como num último ímpeto de autonomia, de que não se podia jactar desde a década de 70, visou subir sozinha a Av. Lucas de Oliveira. Por sincronicidade cósmica, ninguém a estava reparando, e o destino fez caber o gesto insólito de independência (esta que tão pouco podia se adequar a um par de joelhos assim combalido). 
O restante de sua carne também era graxa pura -- toda ela, traduzida impenetrabilidade do Ser. Embebida em cortisol e adrenalina -- o que alguns clínicos chamariam de "melhora da morte" -- teve a competência de atingir o cume da ladeira íngreme. Morta enfim e sorrindo, caiu rolando sobre transeuntes como se vitoriosa num boliche post mortem; caiu rolando até o Guaíba. Alguns atribuem a ela as enchentes de 2024, em Porto Alegre. A pachorra de Bisavó nunca esqueceu as enchentes de 1942.

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