quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Morungava

Eu apático na parada
Passa Santo Agostinho
Passo do Hilário
Morada do Vale
I e II
Quando de repente atravessa
Silencioso
suave
sobre o escuro e quente asfalto
Morungava-POA
Vazio, azul, soturno e belo
O motorista passa reto na parada
e sereno permanece
Posso ver ali uma velha
de olhar vago e bondoso

O azul daquele ônibus
resplandece à luz do sol
Cruza reto a avenida
e se vai além de Gravataí
Morungava é o paraíso
e quem dirige é Deus

Aqueles rostos úmidos e cansados
multidão de pecadores
sobem em Nova Gleba ou Santa Rosa
mas nunca apontam 
para o sacro e etéreo Morungava
a bem-aventurada e única velha
sentada sozinha
entre os quarenta e três assentos desocupados
garantiu sua vida eterna

Paraíso dos grandes morros
entre Taquara e Itacolomi
Morungava-paraíso 
o motorista é Deus

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Metal, raio, relâmpago e trovão: biografia de uma geração


Renato Manfredini Júnior nasceu em março de 1960, na Ilha do Governador, Rio de Janeiro. Desde sua tenra infância, já tivera experiência com a música: com alguns meses de idade suas lamúrias eram acalmadas com velhas canções no gramofone e, com quatro anos, estudou piano clássico. Teve uma infância convencional, jogando bola e empinando pipa. Aos nove anos de idade, se mudou para a parte leste dos Estados Unidos, no período no qual estabeleceu contato com a língua e a cultura norte-americanas, que permaneceria influente em sua arte até o fim de sua vida. Ao voltar para o Brasil, aproximadamente três anos depois, mudou-se para Brasília e adquiriu uma doença nos ossos que lhe afligiria ao longo de quase toda a sua adolescência. A doença - epifisiólise - lhe prenderia numa cadeira de rodas, o que lhe deixaria enclausurado no seu quarto, sem contato com o mundo exterior. Foi nesta etapa da vida que seu destino se consolidou: lia de poetas modernistas brasileiros a Shakespeare e ouviria de música clássica a rock, sendo que este último lhe atrairia para sempre. Neste período que lhe florescera o desejo de ser uma estrela do rock, o que o fez criar uma banda imaginária, a Forty Second Street Band, pela impossibilidade temporária de se montar uma banda de fato. Renato lia muito sobre música e foi neste tempo de isolamento que sua vida seria projetada. Aos dezessete anos se recupera da doença e forma uma das primeiras bandas punks do Brasil: a Aborto Elétrico. Com uma linguagem crua, corrosiva e contestadora, acompanhada de riffs básicos que seguiam o lema do it yourself a banda montaria o cenário de uma importante etapa da história da música popular brasileira: o BRock dos anos 80. Sobre ideologias anarquistas, construíam-se pilares de uma nova estética para o cenário musical brasileiro. Renato e os demais integrantes rompem com a banda poucos anos depois, em razão de discussões por causa de algumas composições, fazendo o jovem músico optar por uma carreira solo temporária. Intitulado O Trovador Solitário, Renato começou a executar composições na base voz e violão, contrariando a acidez e a violência punk que há pouco era adepto. A carreira solo não durou muito tempo e Renato conheceu o baterista Marcelo Bonfá, com o qual inicialmente desejava montar um núcleo de banda, convidando outros músicos para se apresentarem com a dupla, evitando adversidades. Porém, Renato e Bonfá inevitavelmente incluíram guitarrista e, mais tarde, um baixista para integrar o grupo. Assim, Renato Russo no vocal, Marcelo Bonfá na bateria, Dado Villa Lobos na guitarra e Negrete no baixo formariam um dos grupos mais importantes de toda a história da música feita em terras tupiniquins, ao inaugurar, em conjunto com outras bandas, um novo padrão estético, semelhante ao pós-punk que, ao mesmo tempo em que herdava a crítica crua do punk, incorporava temáticas e melodias mais soturnas e introspectivas. A banda Legião Urbana, assim chamada, conseguiu contrato com uma das maiores gravadoras brasileiras - a EMI Odeon - após muita perseverança, lançando-se para os ouvidos das grandes massas com seu primeiro disco, quebrando o convencionalismo que reinava na indústria fonográfica. O primeiro disco, de 1984,a inconformidade punk de uma forma não tão agressiva, mesclada com algumas canções românticas. A estética do disco não representava puramente um murro direto nos pilares das instituições e dos costumes mas retratava, de um modo mais subjetivo e lírico, as insatisfações internas do jovem no meio social e político da época (final da ditadura militar e crise econômica). A subjetividade poética se tornaria ainda mais evidente no segundo dico, Dois (1986), que se distanciava cada vez mais de uma tentativa de contestação da moral e dos costumes, buscando maior refúgio nas relações amorosas e nas decepções próprias da juventude. O terceiro disco, Que País É Este? (1987), surpreende e resgata a essência punk de dez anos atrás. A banda redescobriu formas de expressar sua insatisfação com o poder e o status quo desenterrando pérolas da crueza do Aborto Elétrico, mesclando novamente, no entanto, músicas românticas. O quarto disco, As Quatro Estações (1989), apresenta uma estética nunca antes vista no decorrer da banda; as composições apresentam um lirismo e uma poética evidentes, mostrando uma tentativa de refúgio no espírito e na religiosidade. No disco estão presentes menções a santos e divindades, bem como, por outro lado, um pessimismo em relação à realidade e, conseguintemente, um escapismo no transcendente, na alma e no amor. Teoricamente encerra-se uma primeira fase da música da banda, seguindo uma linearidade inevitável, própria da vida: nos primórdios, havia a agressividade que, aos poucos, metamorfoseou-se em compaixão e humildade. Ou era a evidência de uma caretização convencional da vida - Renato, o letrista, e os demais músicos chegaram aos seus trinta anos e tiveram filhos -, que apresentasse uma certa conformidade e reconhecimento da condição de adultos - deixando de lado a rebeldia juvenil -, ou era outra forma de expressão artística. De qualquer forma, os discos vendiam milhões de cópias, revolucionando o padrão fonográfico com novas estéticas. Assim, a Legião Urbana virou pop sem querer. Fechava-se então uma fase que daria bases para novas propostas.
A banda continua seu paradoxo lançando seu quinto disco, V (1991), inaugurando novas formas de expressão com as mesmas temáticas de sempre. O tema das letras era o mesmo, mas a estética se apresentava de outras maneiras. Com um tom aparentemente melancólico, V buscava novas saídas. Não sendo o ápice do escapismo como o disco anterior, o quinto disco oferece esperanças no amor, em melodias ora doces, ora taciturnas. O álbum refletiu o grande baque social com o governo Collor, e a estética do disco apresentou novas formas de reerguer-se, apesar da atmosfera medieval e conturbada. Analisando a temática, V é menos triste que As Quatro Estações, sendo o último uma tentativa desesperada de transformar as mazelas da realidade em esperança - no momento no qual as melodias alegres mascaram o peso das letras -, enquanto o primeiro admite as dificuldades e tenta se recuperar (as melodias, neste caso, são realistas, ou seja, se ajustam àquele tempo). O sexto disco, O Descobrimento do Brasil (1993), se assemelha ao As Quatro Estações, no momento em que busca o alívio das dores existenciais na convivência, no amor, na essência do espírito e na busca pela perfeição. As melodias alegres o evidenciam. Renato tentava se recuperar de quatorze anos de alcoolismo em clínicas de reabilitação, e tentou passar a tentativa de buscar a pureza em suas composições. O cantor, ao longo dos anos, viveu decepções amorosas e experiências traumáticas com heroína e álcool, influenciando nas temáticas das letras ao longo dos anos. Renato Russo se aventura em outros campos, lançando um disco em inglês e outro em italiano, primeiro buscando exorcizar amores passados, depois buscando resgatar suas raízes familiares. Os discos, em razão da velha satisfação das massas, tiveram números mastodônticos de vendas, embora fossem em outras línguas. Graças ao apoio perene das grandes gravadores, o cantor atingia ouvidos de Oiapoque ao Chuí e os emocionava, com composições cativantes e universais, que tocava e ainda toca fundo no coração do jovem brasileiro. Renato Russo, em seu último anos de vida, lança A Tempestade (1996) com a Legião, demonstrando pela primeira vez uma música verdadeiramente melancólica em toda a história estética da banda, bem como um som diferenciado que, há anos, se tornava cada vez mais pop e cada vez menos agressivo. Nas temáticas e na melodia, o ouvinte podia sentir no fundo a tristeza que varava o espírito de Renato frente a frente com a proximidade de sua morte. O cantor já tinha consciência da fragilidade de sua saúde e se apressava em concluir sua obra final. É realmente um álbum triste, pesado, difícil de se ouvir por completo. Supera a aparente melancolia de "Por Enquanto" nos primórdios, a poética de "Andrea Doria", a tristeza em relação à solidão de "Angra dos Reis", a solidão novamente de "Maurício", a lamentação de"Love in the Afternoon"e até mesmo os berros sofridos pelo amor perdido de"Vento no Litoral"; A Tempestade ou O Livro dos Dias supera a todo o resto em matéria de tristeza, principalmente ao escutar a voz fraca e debilitada de Renato que, na grande maioria das músicas do disco, permaneceu em voz guia por não ter mais condições de cantar. Renato estava com infecções pulmonares que lhe afetavam até na fala, em seus últimos dias. Não mais conseguia caminhar direito e vomitava tudo o que comia. Vendo cara a cara a sua própria morte, Renato entrou em depressão profunda e se isolou em seu próprio quarto nos últimos meses. Dispensou tratamento com coquetéis de drogas e recusou internar-se no hospital. Estava magérrimo e fraco demais para ir ao estúdio, pois havia perdido dezenas de quilos. Estava com a temida, polêmica e famigerada AIDS, que contraíra anos atrás com namorados doentes e uso irresponsável de drogas. Ficou meses com o vírus incubado e assintomático por vários anos, mas começou a definhar rapidamente em poucos meses. Ele não se suicidou, mas não lutou. Renato Manfredini Júnior morreu em outubro de 1996, vítima de complicações pulmonares e renais da doença, de madrugada. Este foi o ponto final de um dos mais célebres cantores de uma das mais importantes bandas do cenário da música popular brasileira.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Desenterrando pérolas filosóficas

  

          Velho texto filosófico acerca da "solidão universal".
            A solidão universal, no caso deste projeto, não é interpretada como o sentimento de vazio e isolamento gerado a partir da carência da companhia, mas sim de uma carência universal de sentido, um sentido para a existência, assim como um valor para ela, que acomete à todos os seres humanos existentes.
            Desde o princípio, o ser humano vivia em contato com a natureza - inclusive com a sua própria natureza humana. Nela, sempre existiram determinados acontecimentos que o homem, naquela época, desconheciam suas causas. Logo, a partir das constantes aparições destes fenômenos naturais, o ser humano desenvolveu consigo uma grandiosa e vivaz curiosidade.
            Ao longo do tempo, o ser humano se deu conta de que, em sua volta, existia um grande mistério e, posteriormente, uma avassaladora sede de conhecimento. Em contato com este vasto caminho de incógnitas, mistérios e desconhecidos, o ser humano concluiu de que nada conhecia. Por conseguinte, passou a duvidar de sua própria natureza e a refletir acerca do cerne de sua existência, passando a se perguntar "De onde viemos?", "Por que razão estamos aqui?", "Quem somos?", "Para onde vamos?", entre outras questões mais específicas. Assim, a partir destas grandes dúvidas, surgem as teorias do conhecimento.
            Destas questões, nasceram os métodos de conhecimento, que passaram a se divergir em virtude de suas diferentes interpretações e concepções, mas que surgiram essencialmente impulsionadas pela vontade da verdade: a ciência, com o seu ceticismo e busca pela verdade com experimentos e pesquisas empíricas; a filosofia, com a sua reflexão introspectiva e a mitologia e suas entidades que, posteriormente, criaram a religião, foco deste projeto.
            O ser humano, como necessidade de atribuir sentido aos seus atos, atitudes e comportamentos e de criar base para seus valores, virtudes e crenças, criou a religião, que passou a determinar, não só padrões ritualísticos e místicos, como também para delimitar a forma com que o mundo seria pensado e criar interpretações e concepções acerca da natureza, bem como para organizar uma sociedade, assumindo um importante papel político. O ser humano, logo, se deu agora confortável com a criação de suas crenças e, por conseguinte, com a explicação, mesmo que fictícia, de seus fenômenos naturais.

            A religião – preponderantemente a cristã – é, na sua mais pura forma, um colossal instrumento político. Desde os primórdios da sociedade, a religião dominou o governo regente e ditou a cultura e a moral vigente. O complexo e aparentemente infalível instrumento da (certeza irracional na existência de algo) se tornou o principal método de introdução de crença, uma vez que se dá tão particular e forte na vida quotidiana do indivíduo, gerando grande influência na mentalidade individual e, até mesmo, em sua personalidade. Sendo que a fé não possui bases racionais, torna-se impossível comprovar ou refutar a existência de algo, formando-se uma incógnita, oriunda da incapacidade de conhecer as entidades divinas envolvidas que, posteriormente, se torna inquestionável e inflexível. Tanto que a fé cristã vigora até a contemporaneidade após se expandir mundialmente em grande escala.
            Um dos grandes motivos para os indivíduos adquirirem a fé é o de seguir uma vida regrada, moralmente estabilizada e valorizada. O ser humano necessita de uma limitação e uma organização para o seu comportamento, assim como uma companhia exterior e metafísica (que, na maioria das vezes, ela mesmo idealiza) que cessa todas as suas dores provenientes naturalmente da própria existência e lhe traça um objetivo a seguir e um molde existencial (uma virtude, resultado dos valores e crenças postos em prática) para o indivíduo viver. A angústia oriunda do niilismo (crença em uma vida desprovida de sentido) estimula e impulsiona o indivíduo a se agregar em determinado tipo de crença, frequentemente sem o uso da crítica, tendo como único intuito a amenização do sofrimento humano diante do vazio que o mundo e a natureza nos apresentam.
           
            A Bíblia, livro sagrado dos cristãos, nada mais é do que uma mitologia com um grande poder político, que se torna cada vez mais branda devido ao seu complexo sistema que une os mais variados aspectos presentes na espiritualidade, mentalidade, moralidade e ideais.

            Este livro, base da tanto da doutrina cristã como do judaísmo e do islamismo, estava fortemente inerente ao governo – teocracia -, principalmente no início do período medieval, período este no qual existia grande ignorância, crueldade e especismos. Porém, no período correspondente ao Renascimento, o sistema medieval se rompeu e deu lugar ao clássico culto à razão e ao pensamento, em contradição com a fé e ao rebuscar o antropocentrismo (o ser humano como centro de entendimento dos humanos) presente nas culturas clássicas (Grécia e Roma antiga) em contradição com o teocentrismo (Deus como centro de entendimento dos humanos). Com isso, um grande movimento cultural e filosófico se desenvolveu grandiosamente, se sobrepondo ao misticismo e aos conceitos de fé com as novas interpretações, concepções e visões de mundo renascidas através do avanço da ciência. Como grande número dos aspectos filosóficos e científicos provenientes do período renascentista vigoraram ao longo de todos os grandes períodos históricos posteriores, tais conceberam grande influência às culturas e ao pensamento humano, servindo como protótipo, como um modelo de pensamento virtuoso a seguir pelas outras organizações sociais, preponderantemente à sociedade ocidental. Porém, este fato gerou um grande enfraquecimento nas bases nas quais a religião se mantinha, diminuindo o vigor religioso presente nos sombrios tempos medievais. Com as descobertas da ciência em conjunto com a evolução do pensamento filosófico humano, o ser humano deu um grande passo além das concepções arcaicas presentes nas culturas religiosas. A moral e a ética entraram em um processo de desenvolvimento e transformação ao longo da crítica e da reflexão acerca dos valores religiosos. Assim, a cultura cristã teve de se moldar em uma moralidade que atende às condições que nossa sociedade contemporânea dita, gerando uma certa hipocrisia ao admitir que a Bíblia é um guia de vida, porém descartando passagens cruéis e antiéticas. A Bíblia, logo, se mostra como uma moral extremamente antiquada em contraste ao que nossa ética atual clama.