quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Lobão, Rogério Skylab, Júpiter Maçã e Renato Russo

 

         Lobão. Rogério Skylab. Júpiter Maçã. Renato Russo. Quatro nomes, os quais podem se mostrar díspares, tanto entre si, quanto dentro de seus próprios microcosmos. A ordem em que os dispus nesta listagem não diz respeito exatamente à gradação de contraditoriedade (ou, ao potencial de contraditoriedade) de cada um; conquanto Lobão talvez seja o mais emblemático, nessa tétrade, na qualidade sobre a qual se mencionou. João Luiz Woerdenbag Filho, em sua persona artística, capitalizou o Paradoxo, mesmo num trabalho de autoanálise: um rockstar, por excelência, um enfant-terrible dos mais conspícuos da geração 80, nutrido da mais barroca das variações do rock – o progressivo –, fora enxotado do seu cenário principal precisamente por sua cada vez mais obsessiva afecção pela tradição do samba: incluiu Elza Soares em seu álbum O rock errou de 1986 (nenhum outro título de álbum melhor descreve seu fenômeno); e, ingressou em pleno Rock in Rio, conjuminado a uma escola de samba. Matou-se, então, o “roqueiro” Lobão. Posteriormente, educou-se de forma autodidática no violão clássico e reestreou, já nos anos 90, com um álbum imbuído na tradição sambística: Nostalgia da modernidade. Mais tarde, ao auge de uma iconoclastia póstuma (primórdios dos anos 2000, quando os cabeças da geração 80 “morreram de overdose”), lançou o brilhante A vida é doce: moderníssimo – trip hop, eletrônico – e, ao mesmo tempo, com fumos de bossanova. Comungou-o com o Brasil em tiragem independente, atingindo altas vendagens, aquém do tacão da indústria fonográfica. Pioneiro.

         Posso dizer que Rogério Skylab é o primogênito desse parricídio. Sua série dos Skylabs foi iniciada pontualmente quando as grandes indústrias fonográficas sucumbiram. Como se isso não bastasse, Rogério quis ainda dissecar o cadáver do pai: fruiu uma escatologia que superou mesmo a proposta de um esdrúxulo Cabeça dinossauro. Paradoxalmente (ou não), pungia fenótipos da tradição; afinal, o pai assassinado não deixa de ser... pai. Skylab é o maior exemplar da derrocada definitiva do rock mainstream.

         Quanto a Júpiter, há nuanças que configuram uma maior complexidade em sua trajetória. Com os Cascavelletes, foi um filho bastardo da geração 80. Isso, porque o rock portoalegrense, rebento também oitentista, mas que só concomitava com o mainstream dos 80 em nível cronológico, em nada coadunava com a verve new wave-like, inglesa, de seus contemporâneos do Eixo Rio-São Paulo. Cascavelletes era Stones com sacanagem: era outra coisa; farinha do mesmo saco ipanêmico, não eram. Despontaram lá e cá nos clássicos programas globais de auditório (vide Angélica). Mas a vivência do “oitentismo” foi substrato de popularidade e atenção ao que viria uma década depois. Primeiramente, A sétima efervescência: early Pink Floyd, psicodelia, remontando um Mutantes 60-70s. Outra proposta, de inovação relevantíssima à aura de luto que predominava com a desintegração proporcionada por Collor, axé, sertanejos e AIDS. Em seguida vem Plastic soda, um experimentalismo aliado ao jazz-bossanova. Hisscivilization é o cume do ludicismo sonoro, com tudo misturado. Mais tarde, Uma tarde na fruteira cristaliza Júpiter como ícone cult dos 2000 pra frente.

         Vale lembrar a trágica entrevista no Matador de passarinho (programa encabeçado pelo próprio Rogério Skylab; uma celebração da decadência), que retratou com muita destreza e sensibilidade a extinção da espécie rockstar-decadente-drogado-clube-dos-27. Entupido de downers, Júpiter se levou, num groove nonsense, à derradeira estereotipificação do clássico “tomou LSD e nunca mais voltou”. Flávio Basso morreu cerca de um ano depois do evento.

         Por que, agora, falar de Renato Russo, se o que até agora se dissertou foi sobre outsiders pur sang da música brasileira? Porque... paradoxalmente, a Legião foi a banda da sua geração que menos flertou com a tradição da MPB. E, sobretudo, foi a que capitalizou o mainstream de sua época. Renato transcendeu o métier, tangendo as raias do beletrismo: inspirado nos Pessoas, Drummond, Shakespeare (lendo-o, inclusive, no original), não era mais apenas um letrista. Virou arauto. Esteticamente, no entanto, a Legião Urbana era uma manufatura sonora um tanto quanto amadorística, dada a deficiência técnica e a pobreza de formação musical propriamente teórica. Não fosse a tergiversação na fonte punk-DIY (do it yourself), superariam o panteão setentista: Tim Maia, Jorge Ben, Novos Baianos etc. Seriam o maior grupo musical da história do país. Não teria sido pela assertiva negação ao chicoecaetanismo seu triunfo? Certo é que, entre os quatro nomes aqui analisados, Renato e Legião não foram crescidos da “Tradição”. Provinham doutra genética, estrangeira; “colonizados”, par excellence. Aos trancos e barrancos, Renato e Legião mantiveram até o fim o seu centro de gravidade, sem nenhum pendor à “síndrome de dignidade intelectual” conceituada por Lobão. Não teria sido este o verdadeiro parricídio?

         Que fiquemos neste ar de vaga nostalgia, como quem vasculha antigos retratos de velhos álbuns de fotografia, enquanto tudo o mais cada vez mais se pulveriza.