quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Herói entre existências


Se a vida existe, ela necessita ser vivida. Viver a vida é uma urgência biológica: o estômago ronca e a boca saliva por alimento, os órgãos baixos avisam que se precisa excretar etc. Há um monstro que rutila por vida dentro de nós, há esse querer, há muitos quereres resplandescentes, há esse Desejo reverberante. A vida pede por vida! sem cessar! A vida de um corpo morre, mas este mesmo é sempre abrigo de outras vidas que se multiplicam exponencialmente, em infinita potência. A vida pede por vida! A vida se alimenta de vida, que se alimenta de vida, que se alimenta de vida...! Se a Mulher Natureza nos pôs um par de olhos dispostos desta forma que aí está, foi por alguma razão, nalgum ponto de nossa lapidação incessante pelo Todo complexo que constitui este mundo. Se a Mulher Natureza nos plantou sobrancelhas, foi porque o salgado suor não nos poderia cair nos olhos, enquanto fugíamos dos tigres, correndo na savana! Se a Mulher Natureza nos moldou com um apêndice, é porque nalgum ponto de nossa existência enquanto humanos precisamos digerir a excessiva celulose! E, se esta mesma apêndice não nos causa, hoje, nada além de moléstia, é porque assim há de ser! Se sofremos; se o sofrimento é uma verdade; se o sofrer é um verbo intransitivo, é porque assim há de ser! Se não somos capazes de sobreviver nesta existência enxuta é porque sofremos - e este sofrer não constitui uma objeção à própria vida, mas apenas mais uma verdade da existência. O sofrer é uma existência desumana que existe na existência que é cada um dos humanos. E ser humano não é "Ser Humano" (o humano pode ser chamado de Ser Humano na medida em que a pedra for chamada de Ser Pedra), mas uma existência equivalente à de um rato ou à do vento. Existir é, sim, absurdo! Velhos e criancinhas atravessam ao seu lado, uma bola de fogo flutuante num céu cor de azul lhe queima a cara, a a garoa respinga e pinta de mais escuro o asfalto... e nada faz sentido! As árvores se agarram tão firmemente à terra, as raízes das árvores perfuram como garras o asfalto... e tudo continua a não ter sentido! Mas, ah, só a arte, só a Arte, só A Arte, só A Arte! é o que salva! Sevastra: quer-se sentido quer-se significado, porque quer-se justificação da trama deste absurdo que é este conglomerado de existências que tece a nossa vigília! Quer-se sentido, quer-se significado - quer-se, quer-se, cada vez mais! Absurdamente, demasiadamente: quer-se! A Arte não há de ser o ópio, não há de ser o nosso atalho a um "Paraíso"; mas há de ser o próprio fundamento da Vida! A Arte há de ser a própria existência, as próprias existências, em conluio, na direção inescapável, no nobre destino de um desfecho! Não há de se buscar teleologia aristotélica, não há de se encontrar teleologia onde não há - a Vida é um absurdo, sem finalidade alguma! Mas, há Arte, não como ópio, mas enquanto Vida multiplicada duas vezes, enquanto o Absurdo for como matéria-prima! A Arte não há de ser ópio! tampouco hão de sê-lo estas linhas torpes! Nem a Arte nem a Filosofia hão de ser ópio para o aborrecido, mero divertimento para o entediado! Se falar em moral fizesse sentido, eu diria que ser inteligente e buscar conhecimento seria uma obrigação moral! Tratar o conhecimento como passatempo é uma desonestidade intelectual. Ser inteligente não é um acessório a uma existência, mas um dos próprios critérios, um dos próprios pré-requisitos, desta! Um indivíduo inteligente há de ser inteligente, do modo que for, no ambiente em que estiver; caso contrário, morre! Inteligência é adaptação: inteligência animal é adaptação ao ambiente concreto; inteligência humana é conhecer o ambiente metafísico! Inteligente é quem alcança o sentido de sua vida - quem não o possui, nem enquanto vício ou paixão, morre enquanto deformidade perante a Mulher Natureza! Viver é uma obra à Mulher Natureza; uma obra dedicada a Esta! Somos todos, enquanto existências, servos da Mulher Natureza! Viver, do modo que for, é a nossa maior e única obra! Há de se viver, há de se suportar existir, seja enquanto herói, seja enquanto assassino - mas que se viva! Porque até mesmo o assassino, enquanto existência assumida, pode se elevar à magnificência de um herói entre existências.