domingo, 2 de outubro de 2016

(Mais) um ensaio crítico sobre a filosofia de Friedrich Nietzsche


Para o Nietzsche tardio, a vontade de poder, um de seus conceitos principais, tornou-se a causa prima do mundo, conjetura cujo cunho metafísico sempre fora negado em sua fase mais empírica. Heidegger, aí, poderia ter razão em retirar o posto de Nietzsche como primeiro filósofo não metafísico e atribuir tal classe a si mesmo.
A vontade de poder consistiria numa substância do mundo, responsável por propelir o movimento constante do devir, do próprio vir-a-ser heraclitiano. O mundo, assim, seria uma batalha incessante e cega de forças entre si, sem nenhum objetivo. Tal vontade de poder seria o fundamento do mundo, sendo este uma matéria finita. Consoante o raciocínio de Nietzsche, visto que o tempo é essencialmente infinito, uma matéria limitada num tempo ilimitado seria condenada a repetir-se permanentemente. Portanto, conforme esta lógica, o mundo se repete infinitamente, bem como o homem, portanto, e todas as outras formas sob as quais a vontade de poder já se manifestou. A esse processo, Nietzsche chamou de eterno retorno do mesmo, pensamento também fulcral no ideário do filósofo. Nesta conclusão, o pensador alemão tangeu tanto a metafísica da qual se abstinha desde o cabo de sua primeira fase quanto o cientificismo de seu tempo, que tinha o darwinismo como seu principal expoente. Entrementes, Nietzsche não se contentou com uma ideia puramente científica e ao mesmo tempo metafísica, mas a expandiu para o âmbito da psicologia. Utilizando uma perspectiva pragmática, que se questiona a respeito das implicações práticas das verdades, Nietzsche conjeturou acerca das consequências que o eterno retorno do mesmo pode introjetar no mundo humano. Assim como Kant utilizou a ideia de um ente divino como um regulador moral da vida humana, Nietzsche usufruiu sua doutrina do eterno retorno como reguladora da existência prática do homem. Desse modo, no caso de Kant, o homem deveria comportar-se como se existisse um deus, ou imperativo categórico, mensurando suas ações; para Nietzsche, forte seria o ser humano que aceitasse o eterno retorno do mesmo como uma verdade prática, ou seja, como se a existência se repetisse infinitamente e idêntica ao que foi. Portanto, o homem forte afirmaria sua vida de forma igual e infinda, em todas as suas alegrias e vicissitudes. Tal ideia culmina num dos vértices do triunvirato conceitual nietzschiano: o além-do-homem. Este, assim, baseia-se na ideia de um homem em constante autodesenvolvimento, externando a sua vontade de potência tanto no domínio de outros quanto no domínio de suas próprias forças internas, superando a si próprio e a toda espécie humana. O além-do-homem provavelmente é, em Nietzsche, o aperfeiçoamento da ideia de gênio e santo, os quais justificariam a existência de uma cultura, pensamento este abordado na fase primária do autor. A existência de uma cultura, esta compreendida como área de vivibilidade de uma sociedade, fundamentaria-se no pico de encantamento num único indivíduo, o que significa que a sociedade deveria mobilizar-se ao cultivo de uma aristocracia, a qual teria poder o suficiente para uma grande magnitude artística; portanto, criando obras de arte nas quais a sociedade pudesse justificar a própria vida. Aí é que o pensamento essencialmente livre e expansivo de Nietzsche contempla concepções de cunho político e social, idealizando uma cultura baseada num sistema bicameral: um lado vive a expansão artística e criativa do gênio, e outro lado se volta à frieza dos assuntos políticos e morais. Porém, da mesma matriz de seu pensamento aristocrático surgem polêmicas a respeito da inclinação do filósofo a ideias escravistas, contrastando profundamente com os ideais democráticos e socialistas contemporâneos a ele, no século XIX. Para Nietzsche, a fim de que se possa justificar a existência de uma sociedade através da cultura, há de se garantir uma classe que cria e outra que trabalha. Consoante a configuração do mundo greco-romano clássico, o trabalho escravo seria vital para a manutenção de uma cultura, já que se pensava as classes criativas -- portanto superiores -- dignas do ócio. Tal contexto humano de desigualdade que, para Nietzsche, é uma prova da violência inerente à natureza, culminou na ruína do mundo antigo, o que influiu num dos pilares da filosofia nietzschiana: a crítica da moral. Já que as classes inferiores da configuração das sociedades clássicas eram encarregadas do peso da manutenção de toda uma cultura, houve uma rebelião por parte deste mesmo estrato social escravo. Tal revolta generalizada ocorreu principalmente no campo espiritual, refinada na criação de uma moral, a qual Nietzsche chamará de moral do escravo. Desde tempos pré-históricos, conforme a análise do pensador, a espécie humana dividiu-se entre nobres e escravos, sendo os primeiros dominadores e, os segundos, dominados. Assim, toda sociedade e toda cultura configuraram-se naturalmente da mesma forma. Os escravos, dominados, sempre sofreram o fardo da submissão, tendo sua força reduzida pela expansão da vontade de poder da classe dominante. Criou-se, pois, um ressentimento nestes dominados, os quais passaram a considerar o seu enfado como uma grande injustiça, o que acumulou forças para a criação do que Nietzsche denominou transvaloração dos valores. Este conceito se fundamenta na ideia de que, neste contexto, os valores nobres foram invertidos pelos valores escravos. Desse modo, os valores de dominância, implacabilidade, audácia e ócio da aristocracia foram destituídos, sendo substituídos pelo estabelecimento das características especificamente escravas, como a obediência, a humildade, a compaixão e a aplicação. Tais características, outrora sintomas da fraqueza, tornaram-se virtudes, construindo-se um ideário moral em busca do triunfo dos malogrados sobre os nobres. Porquanto para Nietzsche esta distinção de classes é uma nuance natural da crueldade do devir, a transvaloração escrava dos valores nobres estabeleceu-se não como um conflito de forças positivo, mas como a ascensão de uma vontade de poder negativa: ao rebelarem-se contra a estrutura desigual da civilização, os escravos instituíram uma moral que negava a vida. Enquanto antes a aristocracia dominava com sua vontade afirmativa de vida terrena, a moral escrava criou um único deus, conceitos de "bem" e "mal" -- substantivando o que eram outrora meros adjetivos, "bom" e "mau" -- e um universo imaginário, a fim de que o sofrimento terreno do escravo fosse suprimido num "Além". A escravidão transvaloradora de valores, pois, foi a acumulação milenar de forças oprimidas que insurgiu de modo tirânico, transformando em ruína a antiguidade clássica e institucionalizando uma religião, que concentrava todo o ideário de rebeldia escrava: o cristianismo. A doutrina cristã, desse modo, expandiu-se mundialmente, sendo uma grande vitória dos valores escravos sobre os nobres. Sabendo-se que, para Nietzsche, o mundo da experiência, ou o chamado "mundo aparente", é o único dos mundos possíveis, o triunfo do cristianismo tornou-se peculiar ao alcançar poder a partir da negação do próprio "mundo aparente", em prol de universos-além, isto é, mentiras. Logo, apesar de sua crítica cáustica à moral cristã, Nietzsche vê-se ainda mais crente numa transvaloração dos valores, só que utilizando seu além-do-homem como porta-voz, o qual promoveria justamente a recuperação dos valores aristocráticos pré-cristãos. É inegável que o triunfo do cristianismo foi efeito de uma grande explosão de forças criativas, sendo tal energia artística algo que o filósofo alemão primou ao longo da história de seu pensamento. Entrementes, o pensador, que chegou ao ponto de conjeturar soluções genocidas para o extermínio das populações herdeiras dos valores escravos, critica o ascetismo e a periculosidade do sacerdote, embora ele mesmo seja, em sua filosofia, um asceta. Para além da postura afirmativa da vida que corrobora em seu pensar, Nietzsche, pois, é um asceta que se abrigou em verdades eternas e metafísicas, tal qual o cristão, que se fundamenta em mundos imaginários, aos quais o pensador alemão tanto se opôs. A filosofia nietzschiana, aí, enverga-se contra si mesma; o que não faz, porém, desaparecer sua importância na história do pensamento humano, ao influenciar as diversas vertentes do conhecimento que proporcionaram novas interpretações do homem.