sexta-feira, 10 de junho de 2016

Ultraconservadorismo transcendental

UMA DOUTRINA


Enquanto Kant tem seu "idealismo transcendental", eu crio a doutrina do "ultraconservadorismo transcendental".
"Ultraconservadorismo" porque contempla a amplidão de sentidos que o conceito "conservadorismo" suscita, este hoje, em seu sentido ordinário, sinônimo de favorecimento à diminuição do Estado e à exploração de mão de obra, dentre outros pensamentos. "Transcendental" porque transcende tanto a noção presente de conservadorismo, bem como supera o limitado antagonismo existente entre liberalismo e marxismo.
O ultraconservadorismo transcendental consiste numa espécie de conservadorismo não fundamentado no liberalismo e no positivismo (como geralmente se caracteriza o movimento dos reacionários), mas no favorecimento de um retorno dos moldes aristocráticos de governo, que remontam aos momentos mais primitivos das sociedades humanas. Tal doutrina, portanto, é tão utópica quanto o marxismo, que almeja retomar o comunismo primitivo das priscas eras de nossa História - completamente inexequível para o ponto a que a raça humana chegou. Qual é o processo evolutivo mais natural não só dos agrupamentos humanos, como de todas as espécies? A formação de hierarquias. Quem está no topo e nos estratos mais inferiores destas? Respectivamente, o(s) mais apto(s) à liderança e os subjugados pelo(s) líder(s). Pensemos numa lógica evolucionista: são os seres mais adaptados que sobrevivem e se perpetuam. Logo, seja o mais forte fisicamente, seja o mais perspicaz, o legislador e comandante deste agrupamento humano triunfou de algum modo sobre os demais. A partir da vitória deste tirano (ou desta oligarquia), toda a matéria humana restante estará sujeita a ele. A massa humana não triunfante será a plebe, enquanto o vitorioso, grupo ou indivíduo, será nobre. As ações da plebe serão delimitadas segundo a livre vontade do dominante.
Alguma semelhança com a totalidade das sociedades humanas a nível embrionário não é mera coincidência - mas, sim, natureza, pureza ingênua dos instintos. O ultraconservadorismo transcendental esmigalha liberalistas e marxistas concomitantemente. Sob este aspecto, pode-se pensar o nazifascismo como única alternativa além desta polarização. Mas, ele foi um produto específico de certa rede de circunstâncias históricas, culturais, econômicas e políticas, enquanto o ultraconservadorismo transcendental, fazendo jus à essência de seu adjetivo, é universal e atemporal. Com isso, qual minha objeção aos marxistas? A filosofia marxista tem profundo valor teórico, especialmente na sociologia. A substância ideológica desta vertente é, de todo, legítima, em sendo um produto da reação das massas à exploração dos capitalistas - legítima como o são todas as forças, mesmo as contrárias entre si, que irrompem de ambos os lados da dialética histórica. A ditadura do proletariado é plenamente justificada, portanto - em sendo uma instauração do poder em sua substância, qual seja, a garantia de evasão dos impulsos despóticos de um líder ou de um povo. No entanto, o objetivo maior do marxismo, isto é, a sociedade comunista, visa à justiça e ao igualitarismo. O que seria a justiça e o igualitarismo, sob uma perspectiva psicológica, senão resultantes da dor do sofredor? "O indivíduo, a sociedade e o mundo têm de ser justos, porque não mais suporto a dor", pensa, nas maiores profundezas de seu ser, o sofredor. "Os indivíduos numa sociedade, inclusive todas as espécies do mundo, têm de ser iguais entre si, recebendo os mesmos direitos, porque não mais suporto a dor", diz o discurso implícito, subjacente, dos modernos (democratas, comunistas, anarquistas) e, também, dos ecologistas e vegetarianos de todo tipo. O sofredor, quando não suporta a derrota diante do vitorioso outro, cria os conceitos de justiça e injustiça, almejando a primeira e lutando contra a segunda. O sofredor, quando não mais suporta a própria derrota, não só clama por paz, como embeleza, espiritualiza a paz - ideológica e/ou religiosamente. O sofredor luta contra a guerra - ele covardemente dispensa a possibilidade de vitória própria, substituindo-a por consenso, paz, amor ao próximo e dialética (de Sócrates-Platão). O marxista, pois, utópico que é, consiste num débil com vestes de ideologia (debilidade esta que, com obstinação, é capaz de alcançar a vitória através de outras estratégias, sem que, no entanto, o fundamento cruel da busca pelo poder se sublime, apesar de seu discurso dizer exatamente o oposto - vide o cristianismo1).
Qual minha objeção aos liberalistas? Eles são atualmente a tese, a norma, hegemônicos que são. Controlam, legislam, preservam - dominam. Nada mais legítimo. Entrementes, os liberalistas é que são hoje os grandes agentes da exploração mais cruel, porque generalizada, destinada a um todo humano de extraordinárias proporções. Tornando a imensurável massa humana existente, por eles assujeitada, num organismo eternamente dependente, arruínam a manifestação da força vital de um povo, com isso sua cultura e, consequentemente, sua justificativa de existir - tornando supérfluos e, no máximo, de alguma forma válidos para o lucro a arte, os ritos, mitos e afins. Os liberalistas transfiguraram uma nobreza legítima, baseada na natureza de indivíduos e povos, em mera aristocracia econômica. Não mais a potência de uma fisiologia ou de uma etnia que determinam os sentidos da história, mas, sim, um produto maior de riquezas materiais e maiores quantias de dinheiro. Instaurou-se, assim, uma floresta de prédios e concreto, em que humanos, bestas em plena energia vital, são amansadas e reduzidas à força energética para mão de obra forçada - uma floresta acinzentada de bestas e de um mundo que perderam seu colorido. Que rachemos o concreto e recuperemos o colorido que nele subjazia - recuperando o colorido do animal-homem, o colorido da vida. Ao menos num ponto os marxistas são sensatos: na sede por revolução.
Somente no ápice do conflito entre tese e antítese, apenas no processo de geração de uma nova tese, é que a velha configuração da vida retorna, qual seja, a guerra - em que se decide, sob o espírito santo da vida, o legítimo vitorioso, que logo triunfará e estabelecerá um novo padrão para a sociedade, girando novamente o palco da humanidade, redirecionando esta sobre novos trilhos - assim o fez cada nome inscrito e eternamente rememorado em nossos registros históricos. Portanto, a brecha em que o ultraconservadorismo transcendental poderá retornar se dá em momentos de crise generalizada, em períodos de profunda desordem, quando ou é tudo ou é nada - isto é, revolução. Sejamos pragmáticos: neste momento específico da história, em que o liberalismo é hegemônico, movo-me para a esquerda, ao lado dos marxistas, pelo mais genuíno desejo de uma crise que, assim, dará a luz para uma nova tese, cuja existência restituirá a ingenuidade do devir2.

____________________
1 O cristianismo do amor incondicional ao inimigo estabeleceu a Inquisição. Objetar sob o raciocínio de que os cristãos inquisidores não eram "verdadeiros cristãos" é uma falácia, a mesma que se propaga dos marxistas críticos de Stálin e a óbvia catástrofe de seu governo socialista - "Stálin não era um comunista de verdade".
2 Ou vir-a-ser, vide filosofia de Heráclito, filósofo pré-socrático. Restituir "a ingenuidade do devir" é libertar a humanidade de ideais que contradizem o movimento constante da natureza, em todo seu horror e delícia. O marxismo, que é a doutrina mais criticada neste texto, destrói a inocência do devir porque condena este por sua crueldade inerente e primordial, ao almejar, por exemplo, uma sociedade de igualdade num mundo intrinsecamente desigual.