terça-feira, 21 de abril de 2015

Por que Nietzsche?

                                                  


            Antes de qualquer tentativa de discorrer acerca das bases do pensamento nietzscheano, é mister analisar um conceito que, nesta filosofia, se apresenta, digamos, de um modo enviesado: o niilismo. O que seria o “niilismo” em Nietzsche? Antes de tudo, é preciso investigar o sentido comum da expressão: no sentido tradicional, o niilismo é a ação ou efeito de negar ou esvaziar valores. A etimologia da palavra já apresenta seu significado: “nihil”, em latim, designa “nada”. O niilismo afetou de várias maneiras o pensamento europeu do século XIX: nas grandes obras da literatura de Dostoiévski, por exemplo,  o escritor russo confeccionou uma coletânea de personagens niilistas, ou seja, negadores de valores. Raskolhnikov, em “Crime e Castigo", por exemplo, precisou negar princípios morais para poder alcançar seus objetivos. No entanto, em Nietzsche, não é desse modo que o conceito atua: para o filósofo alemão, o niilismo é a ação ou efeito de negar ou esvaziar a vida. Ou seja, de algum modo, o indivíduo abandona o devir natural da vida em nome de ideais ou valores supremos. Para Nietzsche, a existência é acaso e desordem, que prevalecem numa batalha constante de forças; ignorar este fato, em nome de princípios supremos, é negar a vida.
            Conhecido este termo, podemos conhecer o ofício e, por conseguinte, a relevância do filósofo: Nietzsche desmascarou os frágeis pilares da cultura ocidental: criticou a filosofia socrática (a julgou “niilista” por delimitar a vida à fórmula [razão=virtude=felicidade] e estabelecer o espírito apolíneo (logos)  hegemônico por sobre o espírito dionisíaco (páthos), duas potências naturais do homem que devem expressar-se em equilíbrio), violentou a filosofia platônica (a julgou “niilista” por desnaturar o conhecimento e a vida ao colocá-los em “além-mundos”, “realidade inteligível” e outras fábulas), verberou corrosivamente a doutrina cristã (a julgou “niilista” por ela propor a antinatureza no lugar da vida, em razão do ressentimento, estabelecendo uma moral e valores degeneradores da vida, como a compaixão, obediência, humildade etc.), contestou impetuosamente seus próprios mestres, como Kant (que estabeleceu a antinatureza propondo uma suposta dualidade na realidade: os mundos numênico e fenomênico) e Schopenhauer (que degenerou a existência com seu pensamento pessimista e escapista para fugir das adversidades do mundo; Nietzsche, aliás, em relação à filosofia schopenhaueriana, criticou o budismo que, apesar de ser “cem vezes mais realista que o cristianismo”, também é um guia para a degenerescência, ao “abster-se da carne e dos prazeres mundanos” e “refugiar-se na verdade do espírito”) e, por fim, contestou duramente ideais modernos, como a democracia e o socialismo, que pautam ambos a existência humana sob a necessidade da “igualdade” que, na natureza, não existe. Nietzsche ostenta um pensamento aristocrático, neste sentido, não sob um aspecto socioeconômico e político, mas espiritual, ao discorrer sobre a distinção natural entre os homens. Logo, propor uma “igualdade de voto” ou “inexistência de classes sociais” seria uma espécie de heresia contra a vida. Contudo, em contato com o espectro de contestações de Nietzsche, qual seria o fundamento de todas estas críticas?
            Para se pensar Nietzsche, é necessário analisar a sentença-chave que se tornou crivo de sua filosofia:
                O homem inventou o ideal para negar o real.”
            A frase supracitada é, talvez, a ossatura basilar do pensamento nietzscheano indispensável para seus estudantes. Todos os alvos para os quais a ponta da lança do filósofo se dirigia eram idealidades, ou seja, projetos ideais e absolutos de vida que o homem “deveria” seguir. No entanto, o verbo “dever”, para o pensador de Röcken, não tem muito sentido: como ele redige em seu “Crepúsculo dos Ídolos”, “o indivíduo [...] é um fragmento de destino, é uma necessidade a mais para tudo que vem e será.”. Ou ainda, como reforço: “Dizer-lhe [ao homem] que “se modifique” significa exigir que tudo se modifique, mesmo o que passou.”. Nietzsche destrói, com esta constatação, todas as convenções que o homem criou para si mesmo, as quais exigiam que o indivíduo seguisse determinado modelo, como, por exemplo, toda a moral e toda a virtude que contrariasse o devir, ou seja, o livre escorrer dos fatos e das coisas, tal qual diz a célebre fase de Heráclito de Éfeso, pensador grego pré-socrático: “não poderias entrar duas vezes no mesmo rio.”. Ou seja, “nada é permanente, exceto a mudança”, e o homem, como parte intrínseca da natureza, também corresponderia ao contexto: daí que seguir modelos fixos, para Nietzsche, é insensato. Portanto, o pensamento deste eremita alemão volta-se por completo contra toda forma de domesticação do homem.
            Seguir padrões estabelecidos de comportamento, como já fora supradito, significa uma forma de tornar o homem doente. Assim, situando-se na cultura moderna na qual Nietzsche estava inserido e, inclusive, assentando-se na contemporaneidade na qual eu, o escritor, nasci, pode-se concluir que vivemos numa cultura doente, no momento em que ainda seguem-se à risca idealidades que, para Nietzsche, no fundo são guias de domesticação humanos. Na encruzilhada da cabeça do alemão, para onde isso nos leva? Para dentro de uma conclusão, que se encontra n’”A Gaia Ciência”: “ – DEUS ESTÁ MORTO! DEUS CONTINUA MORTO! E FOMOS NÓS QUEM O MATAMOS!”. O que significa dizer, na metáfora nietzscheana, que Deus morreu? Ainda: por que nós, humanos, fomos responsáveis pelo deicídio? Leitor curioso, não interprete “Deus” como o antropomórfico velhinho-de-barbas-brancas, criado à imagem e semelhança do homem; saiba, homem trivial, que o bigodudo aglutinou na palavra “Deus” todas as idealidades que o homem havia criado e, agora, as matou. Por que a estúpida raça humana uma vez criou seus ideais e acabou por assassiná-los? Face a face com a mancada de suas criaturas, o homem se deu conta de que seguir ideais absolutos não faz sentido, numa realidade em que o homem é parte integrante das violentas águas do rio heraclítico; o homem ordinário e plebeu deu-se conta de quão tamanha era a estupidez de obedecer a modelos morais, matando estes seus filhotes que não mais servem para consolar a vida. No entanto, as grandes massas humanas-demasiado-humanas, por sintoma de fraqueza, executaram os ideais, mas não abandonaram suas carcaças! O homem matou “Deus”, mas dele não se esqueceu. Parafraseando um trecho medular da ossatura nietzscheana: “Deus está morto, mas seu cadáver permanece insepulto.”.
            Niezsche, que escrevia sob um caráter integralmente afirmativo, não parou por aí; agora, após o deicídio, a questão que irá pairar no seu pensamento é a seguinte: quais as consequências da morte de Deus? O árduo labirinto do cérebro do filósofo desemboca numa conclusão essencial: além-do-homem! O indivíduo que não mais necessita das idealidades (ou “muletas metafísicas”) para se manter no mundo; o homem que encontrar a sabedoria no corpo e na terra, e não em “verdades-além”; o homem revolucionário e sobressalente nas massas, facilmente detectável na história humana; o homem que afirma a vida na mais insuportável dor e na mais grandiosa alegria, e com ela triunfa: este é o além-do-homem. O indivíduo do grande espírito que traz tesouro à humanidade; o grande artista; o homem essencialmente criador de valores; o grande educador; o homem extraordinário, que não se contenta com as meras gratificações humanas; o indivíduo que, em nome da vida e só dela, busca potencializar a existência em sua individualidade, para além dos freios demasiadamente humanos (valores, virtudes, princípios); numa expressão grosseira, utilizando o grandioso exemplo do professor Clóvis de Barros Filho, o além-do-homem é aquele que “não dispensa uma fudela em nome da monogamia”. Em suma, o Übermensch é o indivíduo que vive sem precisar de Deus: é o sentido da terra. Para finalizar este pequeno sumário do pensamento nietzscheano, um trecho retirado d’”O Anticristo”:
                Nós somos hiperbóreos [...]. Além do norte, do gelo, da morte – nossa vida, nossa felicidade... Nós descobrimos a felicidade, conhecemos o caminho, encontramos a saída de milênios inteiros de labirinto. Quem mais a encontrou? – Acaso o homem moderno? “Eu não sei entrar nem sair; eu sou tudo aquilo que não sabe entrar nem sair” – suspira o homem moderno...”.


                                                           FIM

Para ilustrar a ideia de Übermensch, uma canção do álbum Antichrist Superstar, do compositor norte-americano Marilyn Manson:
https://www.youtube.com/watch?v=Ypkv0HeUvTc